sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Gustave Doré (1832-1883)


Ouríssas

Eu, Khorn Gachet, respiro aqui na ilha de Ouríssas e acho que o Deus é aquele que está no quartzo, mas não é o quartzo; é aquele que está na baleia jubarte, mas não é a baleia jubarte; é aquele que está na respiração de Khorn Gachet na ilha de Ouríssas, mas não é nunca – o Deus –, a respiração de Khorn Gachet na ilha de Ouríssas.

Porque Khorn Gachet sou eu e sei que não existo. O que há é o Deus se fazendo de desentendido, um braço de mar atrás das montanhas que circundam a baía e algumas estrelas cadentes que despencam do escuro céu das noites de Ouríssas se Dona Lua não nos deu o ar da graça.

Eu, Khorn Gachet, respiro as luas de Ouríssas. E se é tormenta em mar sinistro, deito ao convés de minha galé errante, posto que, em Ouríssas, não sou o Deus, mas o olho Dele na escotilha – se me faço entender, se me faço entender melhor.

Ouríssas é pequena como uma pedra sob o sol, ao largo dos promontórios de Khür, que ruem sobre as águas, em estrépito contínuo. E povoam, a ilha, os pássaros, além de servirem generosamente, a mim, Khorn Gachet, e à minha não pequena distração, momentos de intenso devaneio ou dessa coisa precária e insuficiente a que chamam alegria.

A última vez que eu, Khorn Gachet, medi, a passos, o diâmetro de Ouríssas, cruzando-a de Leste a Oeste em busca de seu equador perfeito, trombei com nuvens que me fizeram tornar à galé, alguma vez ferido de seus raios e elétricos, estrondos de estilhaçar um coração mais fraco. Eu, Khorn Gachet, também da estirpe militar dos Bragança, logrei resistir aos feitiços de Ouríssas.

Nas noites crivadas de morcego, e sem lua, só o barulho do mar à praia, a hora sabendo a sal, duas vezes ao menos amarrei-me eu mesmo ao mastro da galé, único recurso para não sucumbir ao chamamento terrível das águias e do brilho delas em metálico prata, das águias que silvam, às centenas, cruzando o céu de Ouríssas feito uma chuva diagonal do abismo.

Não crocitam nem piam as águias de Ouríssas, sereias de asas; antes nos convocam a um cio de penas e penachos; escruciante maneira com que o instinto clama por um gozo que é farpa, que é farpa e chama.

Em Ouríssas, afinal, alcançamos, eu Khorn Gachet e meus navais, vencer o pior – a nós mesmos.

E por isso, os navegantes de Hérida somos tão orgulhosos desta ilha próxima ao incessante ruir dos promontórios de Khür. Antes que tudo afunde – de uma só vez e golfada. Ouríssas, Ouríssas, meu amor.


Do livro inédito "Ilhas"

Albert Koetsier


26

Amor, sim:
Porque tudo é belo ---
A romã, o lábio, a fala, a cisterna.
Amor de amar
A casta flor do chão
E as reentrâncias do muro,
A manhã, a lua, a tarde.
Amor, sim:
Porque a cor do antúrio
Conta uma história serena
E amar o calmo confirma
O ânimo, os deuses que riem
À sombra das árvores
Do jardim de Parmênides.
Amor, sim:
Porque, amorosa, até a nuvem,
Ainda que gasosa acolherá
Meus todos, meus plenos, teus inteiros.


Do livro "35" (poemas de amor)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Origens da escrita chinesa
A VIDA CURIOSA DAS PALAVRAS

A maioria dos dicionários etimológicos costuma nos dar o princípio das palavras de um modo quase sempre frio e sucinto. Não há charme nem gozo – as palavras, em estado lexical, lá estão – marcadas, quase sempre, pelas datas de seu surgimento e/ou de seu uso corrente, em abreviados e desengraçados parênteses.Apesar de não abandonar nunca os meus inseparáveis Antenor Nascentes e Antonio Geraldo da Cunha, dois celebrados monstros da pesquisa etimológica, impossível não denunciar, contudo, a “frieza” inerente aos velhos dicionários ou a sua inextricável limitação.

Não tome, entretanto, meu bom leitor, em hipótese alguma, a assertiva, como perfídia; não, é só uma constatação – gelada feito um pepino.Mas isto está por um fio – nas livrarias brasileiras já pode ser encontrado o produto final de sete anos do incansável e diuturno trabalho de um jornalista que só não se tornou filólogo por acaso. Falo do carioca Márcio Bueno, que não é meu parente mas o autor do mais que delicioso “A Origem Curiosa das Palavras” ( José Olympio, 264 págs, R$ 34,00, formato 16 x 23 cm) – extenso e acordado projeto que além de consumir quase um decênio da vida e energia de seu idealizador, posso assegurar, leitor, é barato garantido para quem nele viaje e em seus intrigantes verbetes.

Coisa que podemos fazer, em primeira mão, aqui e agora, só para dar uma idéia, ainda que pálida, do que seja esta “etimologia para milhões”. A melhor maneira, aliás, de fazer interessante a qualquer pessoa o rico patrimônio da última Flor do Lácio, como chamou à língua pátria, em decassílabos perfeitos, o nunca assaz louvado Olavo Bilac, num soneto pra lá de famoso.

A palavra alameda, por exemplo, leitor – atualmente designa rua ou avenida tendo às margens qualquer tipo de árvore. No começo o nome era aplicado somente a vias sombreadas por “álamos”... Já alarme, nos ensina Márcio Bueno, procede da expressão all’arme, que significa, em bom italiano, “às armas”. O brado era usado para que uma tropa militar se armasse com vistas a se defender ante a iminência de uma investida inimiga...

Quando chamamos alpinista ao nosso herói Jorge Niclewiecz, que já chegou ao topo do Aconcágua, só não erramos porque o uso sistemático da palavra a incorporou ao idioma, posto que “alpinista”, na origem, era só para designar quem escalava os Alpes... Tanto assim que no espanhol de nuestra America um sinônimo para alpinista é “andinista”, uma clara referência aos Andes...

Biruta, esta uma descoberta exclusiva de Márcio Bueno, é, sabemos, um saco de lona cônico que, nos aeroportos principalmente, é fixado no alto de um mastro para indicar a direção do vento. Em razão de seus movimentos, muitas vezes descontrolados, o termo acabou por designar também “pessoa amalucada”. E não o contrário, como muita gente pensa...

E quem poderia supor que a palavra canalha tem a ver com “cachorro” ? Pois tem, e muito, leitor. O termo deriva do italiano, de “canaglia” – cachorrada, cachorrice, cachorreira... Já dundum – aquela bala que quase matou o Ronaldo Reagan, e que explode no impacto, muitos aí podem estar pensando ser um vocábulo onomatopaico, isto é, que imita o som que produz, como “xixi”, por exemplo. Quem assim pensou, errou – “dundum” vem do nome da localidade indiana Dum Dum onde foi desenvolvido o projétil...

E xará, então, vejam que coisa curiosa – usado para designar “homônimo”, vem do tupi onde “xe’rerá” quer dizer “meu nome”. Tão curioso quanto a etimologia de xereta que procede do verbo “cheirar” e designa o indivíduo que vive metendo o nariz onde não é chamado... O que não é o caso, – ouviu professor Albino Freire? –, nem do “xe’rerá”.

Bueno, autor deste impagável “A Origem Curiosa das Palavras” e nem deste outro Bueno que em vez de dissertar sobre fugacidades, o seu legítimo ofício, mete-se hoje aqui a demarcar a origem das palavras...


"O Estado do Paraná", domingo, 22 de junho de 2003

Prêmio APCA de Literatura

O livro “A copista de Kafka”, de Wilson Bueno, acaba de ganhar o grande prêmio de literatura (categoria Conto) da Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA, como melhor lançamento de 2007.

O livro foi publicado pela Editora Planeta.
Paulo Leminski e Alice Ruiz
Ver e escutar Paulo Leminski
http://www.youtube.com/watch?v=oEXklTvm3aU&feature=related

domingo, 9 de dezembro de 2007

Mandala
JAMIL

Agora, Turco, que você não morre mais, entabulo contigo esta breve conversa no escuro. E te confesso, mal sei por onde começar – tanto a vida andou conosco, e tanto tempo, meu Deus!, que temo errar de mão e pôr isto aqui em lágrimas, a última coisa que você desejaria de nós, os teus amigos, mesmo sob o signo da cumplicidade que nos embalou esta vida cachorra durante quase 40 anos. E que agora, sem dó nem piedade, a morte horrível usurpa, trai e vilependia.

Desnecessário dizer que o teu riso mordaz – pronto a transformar em pó de traque a caretália dominante –, fica conosco – mais lição do que lembrança, e a ternura com que você se debruçava sobre nossos toscos textos ou a nossa vida pessoal tanta vez dilacerada, não haverá, por certo, quem os substitua – a um ou à outra. Esta conversa no escuro talvez seja maior que nós e denuncie Deus com uma veemência – desusada em nós quando se tratava do mistério e do Destino.

Lembro da gente feito dois meninos, o que, a rigor, nunca deixamos de ser, – moleques em nossa constante irreverência, imitando pompílias & valfridos, você que era capaz de rir até mesmo daquilo que o matava. Que dizer de si ou dos amigos que o amaram sempre com um admiração alguma vez atônita e desesperada?

Não tenho outro modo para situar a tua passagem por nossas vidas senão lembrando que você foi o desvelo, a promessa, a sempre renovada esperança. E a tua generosidade, sobretudo a tua generosidade intelectual, há de nos servir de guia e caminho. Este, sem dúvida, o teu maior legado, ao pequeno círculo de amigos que o acompanhou praticamente por toda vida – de Fábio Campana a Nêgo Pessoa, de Pissetti a Roberto Requião, do saudoso Vinhóles ao igualmente saudoso e saltitante Perly, o dândi velhote que, um tempo, conosco levava a madrugada ao cais da aurora.

Os teus livros, estes hão de nos sobreviver a todos, porque você foi, Turco, aceite ou não, o melhor de nós, animado por uma chama a um tempo genial e diabólica. Não serão o teu enrustimento, a tua incurável timidez, capazes, garanto, de anular o que neles é alta lição da melhor arte literária, ali onde você foi, queira ou não, Turco, mestre consumado. Você sabe, também, que isto aqui não é, em hipótese alguma, um elogio fúnebre. No máximo, um preito de gratidão e de saudade...

Lembro de nós, lembro tanta coisa que juntos vivemos, e quase nem consigo ir adiante neste texto, Snege, posto que não alcanço me defender de mim mesmo, de minhas agruras e fragilidades. E se cá ponho as vísceras de fora, lúgubre, lutuoso, é porque você merece de mim esta pública confissão aqui – sentimental, talvez, aceito, mas que tem, ao menos, a salvar-lhe, a mais absoluta franqueza e a mais absoluta sinceridade. Disso não me acuse, Turco, de não estar falando a verdade.

Você vai fazer muita falta. Aliás, você já está fazendo muita falta. Continuarão por aí os falsos literatos armados só de vaidade e suficiência; a província continuará passeando as suas fabulosas nulidades oficiais, cheias de gestos e ademanes, talhadas em ternos impecáveis e sem alma alguma que as comova ou abrigue; seguirão, enfatiotados e arrogantes, os mediocrões medalhados.

Só você não estará mais aqui para rir na cara deles aquele teu riso espantoso – de dentes graúdos e agressiva barba grisalhada, chamando-os aos brios – no uso da mordacidade punhal com que você, aos babaquaras, não perdoava.

A pasmaceira, Jamil Snege, sem você, é e será só um osso – duro de roer.


"O Estado do Paraná", domingo, 25 de maio de 2003

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Cartier Bresson


Sombrus

Perde-se na noite dos tempos a memória do primeiro navegador que desembarcou na ilha de Sombrus. Não se sabe quando isto se deu nem a nossa humanidade foi capaz de buscar mesmo a data aproximada da arriscada façanha.

É que em Sombrus vivem e latem, noite e dia, os cães selvagens do Arquipélago, que ali fizeram morada não se sabe igualmente como e muito menos por meio de quem. Aliás, pouco se sabe da história primeira de Sombrus, suja, sem dúvida, de lendas sinistras e ainda mais sinistros eventos de sangue e mar, sal e insistência.

Não convém, de nenhum modo, entretanto, ficar aqui lembrando a história pregressa de uma ilha que emergiu das águas do Pacífico feito uma flor monstruosa e triste. O que vale anotar é o presente. Este se dá, em Sombrus, de forma sumamente enigmática – as horas passam não em direção ao futuro, mas num lentíssimo escoar-se passado e saudade afora. Herança, odores, perfumes – esvaídos nas dobras dos dias, puro reverso, notícias longínquas, ecos de tardes soterradas pelo Tempo.

Em Sombrus, primeiro vêm as noites e depois delas o entardecer e, na sequência, a própria tarde, a manhã, o alvorecer, a madrugada inteira, para só então sobrevir de novo a noite antes da meia-noite, a lua e as estrelas.

É sempre assim. Conosco também retornam as faces que a mó dos anos puiu e gastou, e, tudo o que era sulcos e rugas reverte, o que é ainda mais inquietante, até uma temida infância que ameaça as gentes com o retorno ao útero e do útero ao aéreo nada de que fomos feitos um dia. A morte de não haver?

Contudo, os cães de Sombrus são os únicos seres que alcançam vencer a marcha à ré do Tempo. Nascem, crescem, procriam e morrem – os alvos ossos nas praias desertas, cada vez mais desertas.

Ninguém até hoje conseguiu explicar porque de toda ilha são os únicos seres vivos capazes do que chamamos, em Sombrus, ou fora dela, escassamente, de futuro.

Então é que se dá de Sombrus o inenarrável encanto – os cães, diz a lenda, são os testemunhos fiéis de que, mesmo ao contrário, os anos andam e andam, consumindo seres e coisas, vegetais e pedras.

Por isso, aturdidos, os cães latem, tarde da noite, e vão aos bandos pelas praias da ilha, como se sentissem a dor do Tempo atravessada na garganta.

Isso um dia vimos e ouvimos, nós, os navegadores de Hérida, há muitos e muitos séculos. Desconhecemos apenas se, pelos indizíveis meses que passamos ao mar, e o nenhum calendário, eles, os séculos, se encontravam ou não ao revés.



Do livro inédito “Ilhas”

Édouard Boubat


Néctar


Noite fechada quando avistamos, os navegadores de Hérida, a intensa luz que a nós chegou, como de indiscerníveis archotes, da ilha imóvel sobre o quente e salobro mar ao sul da baía de Santa Assunción; e era assim, pintada de amarelo, a ilha de Néctar – cantada em prosa e verso por nautas, poetas e loucos, desde antes das embarcações, das longas rotas marítimas e das descobertas.

Néctar, ilha por todos sonhada, nunca ninguém provou dela, contudo, o mel. Encanto soterrado no que passou, feitiço de ilha sempre por existir – desde o começo do começo do começo.

Em Néctar, a vigília pronta ao bote, nunca permitiu que conhecessem, da ilha, florestas e montanhas, rios tocados pelo açúcar mais claro, pedras a verter olor e espuma. Mas a vigília, impiedosa, sempre tentou, e alguma vez sempre conseguiu, impedir que o sonho de Néctar se transformasse em realidade.

Isto até o dia em que, descuidada, a vigília adormeceu e sonhou com uma ilha quase bíblica onde doçura e calma, encanto e lucidez, formavam nela como se bosques desabados de flores.

E só então os habitantes de Néctar, imersos no sonho de estar sonhando Néctar em plena baía de Santa Assunción, martirizavam, ainda outra vez, a exemplo do poema andaluz, colibris de amor entre los dientes.

Não foram poucos os embarcados que se atiraram ao mar revolto em busca de Néctar e seus entrecéus de estrelas, morrendo alguns, salvando-se outros, em meio ao mar tempestuoso. Chegar à Néctar era mais que uma imposição do espírito, mais que as aventuras desatinadas, mais que morrer de amor entre escombros; chegar à Néctar era a honra da conquista e o amor mais claro à poesia que na ilha andava como andam os ventos, ainda hoje, rente às águas da baía de Santa Assunción.


Do livro inédito “Ilhas”

Edward Curtis


A sede

Correu por todo o Kinpur a notícia de que um iluminado hindu se encontrava em “estado de orgasmo” ininterruptamente há mais de duas semanas, num mosteiro zen próximo a Ayantavar, no sul da Índia.

Benien, jovem monge recém-admitido entre os andarilhos-pedintes -uma espécie de “ordem” tão rigorosa que era incapaz de aceitar até mesmo os mais famosos Mestres, justamente porque eram famosos e isto, segundo eles, constítua sério empecilho-, pois o jovem pediu permissão para uma viagem a Ayantavar, com o exclusivo propósito de conhecer o monge em gozo orgásmico há duas semanas seguidas.

– Seguirei anônimo e voltarei ainda mais anônimo – comunicou ao Mestre, acrescentando que, desse modo, provavelmente arrrancaria do iluminado monge o segredo de seu espantoso orgasmo.
– E para que aspiras a tamanho orgasmo, Benien? – perguntou-lhe o superior, com um rir de olhos que era pura malícia e ainda mais pura sabedoria.
– Ora, Mestre, e alguém por acaso não o desejaria?
– Benien, o sábio de Ayantavar, precisamente ele já não o deseja mais...

– Como assim? – perguntou o jovem.
– Há mais de três dias que o iluminado hindu faleceu para esta encarnação, Benien.
– Morreu? De quê?
– De sede, Benien. Ninguém fica duas semanas sem beber água...

Man Ray


A lágrima

O discípulo, flagrado em grave crise espiritual, tenta, do Mestre, esconder as lágrimas.
– Há coisas, Mestre, que nos fazem chorar de rir...

E todo se sacudia num pranto convulsivo, incontrolável, num inconvincente esgar de riso, tentando administrar, ao menos frente ao Mestre, o férreo orgulho.

Olhando-o firme, dentro dos olhos, o Mestre, sem esforço verte abundante lágrima, ausente dele, como é comum no Tibet, o mínimo crispar de um só músculo do rosto.
– Mestre, estás chorando?
– Estou, estou sim.
– Mas de quê, Mestre?
– De vosso riso tão extraordinariamente copioso...

Georgia O'Keeffe


Sidus


Consta que os marinheiros de Hérida procuraram, por longo tempo, a ilha de Sidus onde - comentava-se por todos os portos e mares -, deambulavam os mortos mais ou menos recentes. Nunca além de há sete anos.

Sobretudo os mortos que, por merecimento, haviam trilhado os caminhos da Terra, os pés descalços, dias e noites, pela exaustão dos meses e dos anos a vagar o mundo que lhes foi dado uma única vez. A levar, com eles, a nua oferenda das mãos e o sincero gosto pela luz de Antares que, já sabiam os antigos, era a maior estrela de todo o incalculável universo.

Ilha misteriosa e percuciente, a ilha de Sidus, segredavam, provia os mortos não das coisas do espírito, como seria o esperado, em se tratando dos mortos, mas de pão e vinho, porque, em Sidus, frisava a lenda, os mortos não morriam mais. Dançavam ao sol de Antares, livres e mortos numa serenidade fluida, amorosa. Nada a ver, claro, com a nervosa azáfama dos vivos.

Pássaros e gnomos, leões e centauros, sereias e lêmures - tudo em Sidus era a severa conspiração contra o canhestro modo como os vivos insistem em chamar de vida a um viver sem conta nem remédio, sem solução nem segredo.

Por isso mesmo, de todas as ilhas sonhadas pelos argonautas do arquipélago de Hérida, ou de fora dele, Sidus foi, sem dúvida, a mais insistentemente perseguida, a mais intensamente desejada de todas quantas ilhas existissem ou viessem a existir, aquele tempo, perdidas Oceano afora.

Mas como não permitir que os mortos morressem se, a cada dia, seguiam morrendo mais e mais - sobretudo pelo esquecimento dos vivos, habituais em levar suas existências ao sabor do vento? Alheios, como sempre, de que pudessem morrer um dia. Ainda que soubessem, os vivos, da certeza quase prosaica, de tão absoluta, pela qual, mais cedo ou mais tarde, os vivos morremos irremediavelmente. E nem há como se curar da morte.

Era aí, entanto, que todos se enganavam - em Sidus, geralmente depois de sete anos, os mortos bebiam das águas do enigmático lago Abrantes e, de modo lento, começavam a deixar de morrer. De profundos passavam a inquietos, e os olhos cerrados deles, dos mortos, abriam-se feito a desassossegada flor do acordar mais imenso.

Ato contínuo, sobre o dois pés a palmilhar as longas praias, agitavam-se excitados e vivos, já bem molestados pelo jugo de existir – o inferno e a agrura, o calor que lhes tomava os corpos feito fossem eles, os recém-vivos, altas labaredas; e o júbilo que lhes tangia os ossos e igualmente os angustiava como se não o merecessem, como se nunca o tivessem merecido.

Velhos nautas, quase aedos, de Sidus diziam que o maior pecado não era o de procurar a ilha, sob esforçado empenho, mas o duro ofício de esquecê-la, de a terem de esquecer um dia - justo quando passassem da vida à morte sem volta nem esperança.



Do livro inédito “Ilhas”

Magritte


Ládiva


“Feliz daquele/ que ao ver o relâmpago/ não diz – a vida é breve”.

No micro-poema do nipônico Matsuo Bashô foi onde encontramos, tarde dessas noites frias, nós, os navegantes de Hérida, a mais perfeita metáfora em favor da vida eterna – senha e sumo de quem se habilita à inenarrável ilha de Ládiva, ao norte do País Eslavo.

De gelo e praias cinzas, Ládiva nunca amanhece. É sempre bruma, e a imaginação da noite, em Ládiva. A noite imaginada nessa permanência com que a névoa insiste, mesmo quando, ao fim da manhã, você supõe, no céu da ilha um sol de meio-dia.

Contam que, muito antes de nós e de nossos bisavós, ou ainda bem antes destes, os moradores de Ládiva, cuja maior característica, registram, era o engenho para escavar terras e construir túneis, chegaram a abrir, a marretas e pontapés, no céu cinzento, um grande buraco. Por alguns dias, o sol brilhou profuso e obstinado, sem intervalos, sobre Ládiva. E iluminou as praias lavadas pelo azul do mar e pela franja das ondas que sobre a areia se atiram ainda hoje, insistentes, suicidas.

Assim que o buraco aberto por nossos esforçados ancestrais tornou a fechar, voltou a névoa contínua e tudo misturou-se, em Ládiva, ao cinza-escuro quando é a noite imaginada, ou ao cinza-claro, forte indício de que é manhã ou tarde na ilha onde cultuamos os mortos com altas velas e mantras que são quase uma secreta carícia. Isto se não fincamos, ao telhado da casa, os crânios lavados a sal dos mortos antigos. Em Ládiva tudo é assim, surpreendente e novo, como se a morte não existisse, como se a morte não existisse mais.

Contudo o que nos incomoda é a imaginação da noite em nossa ilha onde sequer a noite existe, o céu fechado de modo nunca interrompido, sem estrelas, nem mesmo o vazio da ausência delas, ali onde nos postamos, quando é madrugada, e nada descortinamos além do permanente breu e a fuligem eterna das esgarças fumaças. Deambula sobre nossas cabeças um céu sempre móvel, e carregado, que foge, incessante foge para o largo Oceano – como se açulado por forças incoercíveis.

Não por obra do vento, diga-se, posto que em Ládiva o vento gane apenas nas frestas das casas e nunca ascende além que a altura da mais alta edificação da ilha – o templo devotado a um deus que ninguém até hoje soube o nome ou, o que é pior, adivinhou-lhe os preceitos e nem sequer a espécie de oferenda que exige lhe seja colocada aos pés. E sem saber o que um deus quer, nós, os nascidos em Ládiva, vivemos sempre temerosos ante a crua iminência de ser duramente castigados.

Por isso amanhã partiremos outra vez ao continente, em meio à névoa e à neblina. Deixaremos o cais de Ládiva, até que ela seja apenas um ponto perdido, fraco a luzir no horizonte, mas que nossos olhos súplices ainda hão de buscar, com saudade, com muita saudade, feito ela tivesse existido um dia.


Do livro inédito “Ilhas”
Anônimo
O vaso e a utopia


O jovem monge anda 70 quilômetros para ter com um mestre cuja fama já ultrapassou há muito as muralhas da cidade.

Exausto e os pés feridos pelo íngreme caminho que leva à árvore sob a qual o monge vive e medita no alto de uma montanha, o noviço, ao deparar com a magérrima figura, não perde tempo. Vai logo perguntando:
– Mestre, andei 70 quilômetros até aqui, pois fui informado de que és o único monge, em todo o Tibet, que sabe o que é o Zen.

Levantando-se com dificuldade, o velho monge apanha ao seu lado um vaso onde guarda a água da chuva. Ergue-o o mais alto que pode e deixa que caia ao chão. Estrépito, a argila a estilhaçar-se, a água entornada à terra.
– Então isto é o Zen, mestre?

E o mestre que até então não dissera uma só palavra, responde, quase solene:
– Não, meu filho. Isto não é o Zen.
Anônimo
Chuva e pó

– Mestre, para que servem as chuvas que alagam e arruínam os arrozais?
– Para que se mostrem chuvas em sua inteireza, meu jovem.
– Mas que inteireza, mestre, se elas acabam com o que temos de mais precioso – o nosso principal alimento...
– Justamente por isso, por serem o nosso principal alimento.
– Não entendo, Mestre.
– Só entenderá quando você mesmo chover sobre os arrozais.

Lídia


Minúscula ilha do mar Egeu, redonda como o Coliseu romano e mais ou menos de mesma extensão e circunferência, Lídia poderia ser a mais despercebida ilha de toda história, não procriassem nela os pégasos, estes cavalos de inenarráveis asas.

Vindos de todo arquipélago, Lídia é o cenário de amor onde se acasalam, nos fulgurantes maios gregos, pégasos com pelagem das mais diversas cores, e asas da mais diversa envergadura.

Mal raie o sol a indicar que é maio no azul do tempestuoso Oceano, os primeiros pégasos pousam nas estreitas praias. Afundam então na areia os cascos, manchados à luz do amanhecer pelas tintas de um ouro-velho de ferruginosa beleza. As asas, essas nem falem, agitam-se alvas mas tão alvas que chegam a refletir como num espelho o azul do Egeu profundo.

Bardos e nautas, górgonas e sereias em vão tentaram chegar a Lídia e foram invariavelmente afugentados, seja pelo violento mar que ali se escrespa e naufraga mesmo as galés mais portentosas, seja pelo pronto vôo com que os pégasos se arremessam, cascos e dentes, asas e crinas tensas, a escorraçar, à proximidade das praias, os eventuais invasores.

Nenhum estranho, nem mesmo os pássaros do velho arquipélago ousaram se aproximar de Lídia. Ou ali deitar seus ovos. Permanentemente vigiada, desde o princípio do mundo, por gerações e gerações de pégasos, Lídia é e sempre foi a ilha dos cavalos alados. De mais ninguém.

E é nela, pois, que crescem, amamentados por soberbas éguas-de-asas, nela, em Lídia, os potros selvagens que trotam, e nela ensaiam, empurrados com o focinho pelos pégasos mais velhos, os primeiros e oscilantes vôos. Obsedante exercício de quedas e imprevistas ascenções.

Então é que acontece: às centenas os pégasos novos descrevem um círculo sobre Lídia, branca e verde em meio ao incalculável azul, e relincham, e voam, enfim voam!, a variegada pelagem, num estrepitar de asas que chega a silenciar o rumor do mar furioso.

Mas são tantos, por vezes, os pégasos no céu de Lídia, os que chegam e os que vão, os que amam e os que se assustam em escuro assombro, que o sol chega a faltar quando demora a tarde extravagante de Lídia e de suas praias brancas.



Do livro inédito “Ilhas”

Carleton Watkins


Florívia


Quando você pensar em conhecer Florívia, ilha de paz e remansos em meio ao turbulento Oceano, pense, antes de partir e examinar, ainda outra vez, velames e cordas, âncoras, víveres e instrumentos de bordo, pense em tudo o que sua generosidade ofereceu ao mundo. Não se decepcione nunca contigo mesmo antes de embarcar a Florívia.

Rememore, minucioso, antes de partir, o que houve de coragem ou desassombro a cada vez que a vida lhe exigiu , não o silêncio dos carneiros a pastar as pradarias ou a sombra quieta das árvores aonde você deitou o seu sono paciente.

Pense, antes de partir, se você já não fracassou, de modo humilhante como podem ser algumas espécies de fracasso. Sobretudo ali, pense, onde seu braço foi curto, e desprezível a mão que se encolheu ao bolso a negar o que o vigor do corpo poderia oferecer de auxílio ou socorro. Pense, antes de partir, na covardia envergonhada que o impediu de salvar alguém ao lado prestes a ser engolido pela garganta do abismo.

Em Florívia não crescem cactos e as praias douram-se ao sol de maio feito um poema todo construído de cochicho, quando, vizinho da noite, o entardecer é só uma extravagância das tintas do céu. Em Florívia dorme-se muito cedo, ainda antes dos passarinhos.

Conversar com as ondas ou com a mudez das conchas e dos caramujos é prática comum em Florívia. Ainda mais comuns do que os longos interrogatórios com que os peixes saciam a curiosidade não-pequena, a medir o tamanho da fé dos recém-chegados.

São bem suaves as noites de Florívia. Ausente de nuvens, o céu é só um drapeado de estrelas que cintilam e reperguntam às ondas, à faixa de areia das longas praias brancas, de onde vem o forasteiro. E principalmente isso, não se assuste: se indagarem o que você traz no coração.

Se você uivou na noite porque era tarde e a solidão o pôs assim num vácuo sem remédio, não, não pense, não vá pensar, a sua arrogância triste, de que, só por isso, você é merecedor de Florívia e de suas escarpas por onde sobem, imensas, monstruosas rosas vermelhas. Se foi, por sua vez, um ser dedicado a si mesmo, a iludir-se de que esse era o melhor modo de doar uma singularidade ao mundo, também não parta já a Florívia.

Embora a vilania e a derrota, o suor da noite grande e o medo andando as paredes da casa, aranha peluda; embora o suplício da espera, melhor não embarcar a Florívia. Lá, no ancoradouro da ilha, em seu porto onde rinocerantes dançam cantigas de boas-vindas e colibris voejam ao redor dos desembarcados feito um enxame fosforescente, só te pedirão uma senha.

Mas aí é que mora o maior mistério de Florívia: ninguém até hoje soube a senha, ao certo. Os que lograram acertar, por pura sorte acertaram a senha a esmo. Mas tinham, dizem, nas mãos - na concha das mãos -, a luz em prata de uma única lágrima. Vertida, contam por aí, face o espanto de sentir a coragem, gume afiado, atravessar de repente toda uma floresta de medos.

Florívia é longe, muito longe, e reverbera em meio ao grande Oceano, nas noites de lua cheia, a sua existência estrelada.



Do livro inédito “Ilhas”

Colombo Apothecaries


O mendigo e a voz

O monge chegou a tal estado de devota mendicância que não desejou mais ter voz. Quando necessitasse dela a mendigaria ao primeiro passante. E assim permaneceu quase duas semanas. Para tudo, usava as mãos e os gestos.

Houve, contudo, o dia em que o monge-mendigo precisou da fala para recitar um antigo mantra búdico, e que só podia ser rezado de viva voz. Não hesitou e acercando-se de um velhinho que passava pela rua, com a mão na garganta fez entender que precisava falar.

– Falar?... – titubeou o ancião, a voz fraquíssima.
– Sim, falar, meu mestre ... – pediu o destituído monge-mendigo – a voz própria, forte e tonitruante.

Sem nada entender, o ancião encerrou a conversa:
– Mas pra quê, meu filho, se tens voz de sobra?
– Eu não tenho voz, mestre. Eu só tenho é um som forte e arrogante que me sai do fundo da garganta.
– Acredito... – assentiu, confuso, o velhinho, desguiando, claudicante, para o outro lado da calçada.

Miran


Billa Jay


Quase três horas da madrugada quando apeou aos portões do Flamengo, o Dr. Ariosto. Grosso, grisalhado e peludo, Ariosto era a fina flor da medicina de Areias, no interior fluminense. Mandei-o chamar por sua reconhecida nomeada na qualidade de clínico de mulheres. Lavínia queixava-se de tontura e tremores, branca e de grandes olheiras, recusando-se a deixar a cama, o quarto. Chegamos a pensar uma inesperada gravidez, vinda assim ao gosto de casamento antigo e que sistematicamente recusara filhos, até esquecê-los que ainda fossem possíveis. Contudo fechei-me em copas – vá lá isto não se confirmasse e teríamos levantado à toa uma expectativa nervosa. Não queria somar ao já nenhum conforto, mais uma angústia.

Conduzi Ariosto ao quarto. Sentada na cama, enleada ao roupão escarlate, lá estava a minha Lavínia sendo cuidada pela creadagem. Confesso que segurei dentro uma ira súbita e bem fula – junto às gigantescas sombras que, fantasmais, cambiavam pelas paredes, os negros sugeriam-me urubus de agouro. Esfriou-me a boca do estômago repentino torpor e um pânico gasoso como que ameaçou desenrolar-se dentre as dobras do meu ser... – vá lá, caderno, – do meu ser assustado.

Não sei se pelo adiantado da hora, ou os aborrecimentos associados ao estado de saúde de Lavínia, senti como se a noite desabasse ao jardim a madrugada espessa, feito um bicho, uma lagarta cujos pêlos pudessem queimar a fina pele de vosso braço. Piara a coruja na espera agoniada de Ariosto noite adentro, o que não constituía sinal consolador. Agora silvavam morcegos enquanto Ariosto auscultava, de minha Lavínia, o coração temeroso. E punha tamanha intensidade ao sobrecenho, o velho clínico, enquanto apalpava e examinava, que mais um pouco supomos vê-lo que grave se nos dirigisse um diagnóstico fatal. Cousas da alma enferma, ali onde mora a culpa feito um bicho, outro bicho, ainda pior que a ácida lagarta, um bicho assim à maneira das lacraias e dos escorpiões, creame de vermes, ardendo de febre e de amoroso amor ardendo.

De que somos urdidos? Em que caviloso reparte de nosso cérebro, o ciúme feito uma ampola de veneno a quem o braço oferecemos? Pois ali, temeroso de todas as fragilidades de Lavínia, desejei que Ariosto indicasse alguma moléstia difícil, ainda que curável, mas que não, não me viesse com a conclusão simples de que aquelas eram cousas de mulher triste. –

– Dr. Leocádio José Prata, necessitamos exames complementares, aos quais, evidentemente, o senhor não poderá assistir, mas sua esposa, Dona Lavínia, encontra-se perfeitamente bem – disse Ariosto detrás dos pêlos, os olhinhos rútilos meio ocultos por espessas sobrancelhas, dessas que, desabadas, ainda retorcem e quase emplumam.

Passou-me ao omniographo da memória, umas que sombras – Lavínia abanando-se detrás do leque cor-de-rosa, milagre da tarde ou do céu, a minha Lavínia, animada pela prosa com que Licurgo deitava lábia e charme, a última domingueira que nos reuniu cá no Flamengo, em torno do gamão e dos quindins da negra Afonsa. Indispensável acrescentar nestas páginas, ainda que só pela pura sensação do instante, já que estas folhas ganharão o bom silêncio das cinzas e do Nada mais ardiloso, o suco de amoras, um requinte que nem parecia brotar das mãos de unhas retortas daquela escrava velha e feia como o perigo. O suco de amoras, senhores – impossível esquecer.

A tristeza de Lavínia, pus isto comigo, insistente, era de outra origem – sabíamos, cada vez com maior freqüência, dos sintomas neurastênicos que acometiam as mulheres, sobretudo quando entravam em cena secretos desejos. Eu também devia levar a alma doente – roía-me dentro a aspiração que não se deve revelar nunca a um homem, a aspiração simples de cessar – de todo e de vez.

Enquanto aguardava que o Dr. Ariosto realizasse o que chamara de exames complementares, com o luxo profissional de quem desejava aproveitar a viagem e dar por concluídas igualmente as apalpações de rotina, o meu pensamento andou-me, atroz, e galopante, frio e vênus, lápide e aurora, um soneto de Bilac recitado à hora ebúrnea dos setembros de então, o meu pensamento – se tudo ia-lhe bem ao corpo, seguramente alguma cousa desequilibrava-lhe o coração...

Uma das creadas abriu a porta do quarto, as duas folhas, de uma só vez, como para facilitar a passagem de Ariosto, peludo e ogro, os olhinhos faiscantes semi-ocultos pelo grosso sobrecenho, toalha numa das mãos, a maleta preta na outra. Com um frio e automático meneio, num limite que não sabemos se de gratidão ou nojo pela negra, nem esperou que o conduzíssemos à porta, consultando o relógio de bolso e marchando incontinênti em direção à saída. De assim, quem seguiu atrás dele fui eu.

– Dr. Ariosto, tudo bem? Tudo mesmo na normalidade?
– Tudo, tudo, Dr. Leocádio José. Volto pelo sábado com alguns resultados clínicos. Pode ir dormir, amigo; e se achar necessário, ao lado dela... – ensaiou jocoso e um pouco biltre, o peludo Ariosto. Eu, de meu lado, não lhe achei graça.

Subindo de volta à caleça que o esperava ao portão, só vi, pela fraca lua a lhe iluminar a abundante cabeleira, – o que, ajunte-se, era um milagre para homem de sua idade –, que enfiando os dedos, de ambas as mãos, grenha adentro, Ariosto de Costa e Lima, como que penteou a juba de ordinário revolta.

Deixei-me ficar ainda ao portão vendo-o que desaparecia na noite pálida, ao tropel das bestas. O mar lá, sempre e sempre o mesmo mar, o mar do Flamengo contando-me então negros contos de horror e crime, fealdades medonhas.


Fragmento do romance “Amar-te a ti nem sei se com carícias”

Brett Weston


Brinks: solo por ti mi pecho arfante se pone estremecido, só por ti y su cola móbile y tiquitita, cauda argolada y casi sempre feliz. Brinks’i. En nesto momento que las copas urden el invierno del balneário de Guaratuba, e todo se pone de frio detrás de las cubiertas, sobretodo el Viejo que en júnio se va a morir e por esto se pone a entornar a lo vino e a temblar, a temblar, como se entornara la muerto de uno solo golpe y gole – mortal. En estos momentos es que me aperta acá en el lado esquerdo una lúgubre canción hecha de remorso, lo podrido veneno de la saudade y me pega, por todo el cuerpo, unas ganas de matar ô de morir. Quiçás, quiçás, quiçás. Chororó, guarará, chororó.

Brinks’imi: si, si, es contigo que hablo, juguete-de-pelos y atado a mi colo, de tal forma acojido, como se hubiera nascido exclusivamente para esso, su linguita destra, que tan marafas a veces, hein, Brinks, que dices, que dices tu?, paraguayta cumple, como en las correspondências que, ahora, há mucho tiempo, no lo sê que es recibir. La marafona no tiene quien la escriba. Brinks’i. Brinks’imi.

Oh, Brinks’michî, Brinks’michî, es tan frio en nesta playa en la que caminas comigo, amiguito simples, testigo de tantos años já, vos que se vá entrado em edad, porque viejo es solo uno, aquel, no, no, Brinks?, no, Brinks’i? No, Brinks’michî?, cosita titiquinita y fofa, focinhito de aguja, ollitos de botón y vidro, mi más pequeno serzito que se mueve, ah, como se mueve, en la arena de esta calle úmeda. Carajo. Brinks!, de esto modo, de aqui para lá, por debajo de mis piernas, ah, Brinks’i. me enovelas com sus corrientes e más um poco estarê en el solo. Y se me quiebra un huesso? Y se san ossossosporossos? Pero tu inquietud, para un perro de casi diecisiete años ( haverá mais longevos asi que las tortugas ô los dinossauros?), ah, Brinks’i, es assombrosa, e solo esto me pone de nuevo de risas contra la vida.

No: tengo Brinks, Brink’si, Brinks’imi, Brinks’michî. Oh, nada te hablo, juguete amoroso y maternal de mi vida marafa, nada te hablo, querido, de como es frio en el balneário de Guaratuba sob el fog de júnio y el mar se pone como de vidro toldado por las lluvias. Brinks’i. Brinks’michî.

El muchacho no há más, solo el viejo persiste con su caceta amputada por el tiempo y que todavia prossigue coçando, solo esto maldito viejo que carrego en las costas hecho una prisionera en el campo de concentración. Brinks! Y já me olvido de que vivas asi dicisietes tan persistentes, já me olvida todo y empezo a llorar.

La misma venda de la equina em frente, Brinks, su fachada y la señora pálida que me vende una copa de conhaque, en los duros ojos de víbero el asco – el temor ô mismo la admiración que provoco en los nativos desde degredado pedaço de mar em Guaratuba del Paraná,l a cada que saigo – bruja ô guru. (...)

Perdoname, Brinks, estos exclamados sonambulismos del corazón. Si, Brinks’i, Brinks’michî, nadie puede hacer algo de bueno ô de sueño por quien, igual que yo, que en neste instante, tengo comigo que todas las salidas estan cerradas. Brinks’michî. Brinks’michîmi. Yo e tu caminando que vamos , los dos, lado a lado, quién lo más preso en las corrientes del bajo-vientre? Quién más viejo que la tortuga?

Oh, Brinks’i, yo e tu caminando que vamos por la estradita que va a dar en la playa del Prosdocimo. No, no adianta que yo cuspa en la pobre señora del bar, noi adianta eganá-la ni rasgar-lhe la piel de su cara com is uñas marafas tan de pantera, una cosa es la solución: marchar y marchar para adonde nos lleve el viento.

Que súcia arena donde jugas y sonoro mijas com una felicidad infantil e llena de risa! Brinks’michî. Brinks’michîmi.

Pero yo, quien soy yo?, sigo confusa, por el conhaque y la vida, la saudade del niño del verano en deciembre entranhada a mi assim igual que uno feto arrancado vivo a la profissión humana, solo tu me entendes, solo tu, mi tiquitito Brinks, ojitos enternecidos de jabuticaba, orejitas vigilantes del silêncio, colita móbile. Brinks’michîmira’ymi.

Brinks’michîmira’ymi, alegrando de yo, oh inocência flagíl, emitindo en lo mercado de peces unos ladridos tan flacos, Brinks, tan flaquitos y tiquititos como tu, Brinks’michimira’ymi, talquito Buldog, pirezito de leche donde afundam biscoitos umedecidos, constantes, tu sabes, y las raciones especiales, Brinks, companhia, ruídos y mañanas.
Brinks’michîmíra’ymi. (...)

Donde estás? Donde estuvo se tu no es más que la sombra en dibujo de la noche que va me pegando sola, assolutamente sola, Brinks’michîmira’ymi, sin nunca haver tenido a vos, tiquititíssimo, nadie non es, ni vos, ni la tarde, ni en el niño e yo, yo estou assim tan sola:
Brinksmichimira’ytotekemi.

Do livro “Mar Paraguayo”

terça-feira, 27 de novembro de 2007

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Do “Cahier d’écrivain”

(...) “E os brejos compridos desenrolados em dobras de terreno montanho – veredas de atoleiro terrível, com de lado e lado o enfile dos buritis, que nem plantados drede por maior mão: por entre o voar de araras e papagaios, e no meio do gemer das rolas e do assovio limpo e carinhoso dos sofrês, cada palmeira semelhando um bem-querer, coroada verde que mais verde em todo o verde, abrindo as palmas numa ligeireza, como sóis verdes ou estrelas, de repente. E, ele assim, ali, a saudade não tinha presa, que ela é outro nome da água da distância --- se voava embora que nem pássaro alvo acenando asas por cima de uma lagoa secável”.

Guimarães Rosa

domingo, 25 de novembro de 2007

Andre Kertesz


Hilda Hilst aos sete anos


Ler o texto de Wilson Bueno
sobre Hilda Hilst no Trópico

Quino


Fernanda Montenegro


Philip Seymour Hoffman como Truman Capote



De cousas e propósitos


Ultimamente tenho acordado não para o que sou mas para o que penso que sou. Desse modo, entre a vigília e o sono, nas manhãs de agora, debato-me, suarento, sob o cobertor; imagino um incêndio em África; comprida uma sanguessuga enrola-se ao rijo dedo do enforcado apontando contra mim a sua sentença, de um jeito inusual entre os enforcados, o cotovelo cosido ao ventre, a mão aberta, igualmente dura, indicador e polegar apontando-me como se brinca de apontar arma de fogo. Esquiva esgueira-se, de novo, a figura de um homem, todo curvo, fugitivo, escondendo o rosto adunco atrás da gola erguida do casaco mais o anteparo do chapéu que escorrega sobre a testa e se lhe cobre assim de uma maneira meio cômica o furtivo olho esquerdo.

Sou só um homem num quarto do hotel Majestic, devo dizer, antes de prosseguir neste arrazoado aqui destinado ao fogo que lhe darei ao fim e ao cabo. Considero-me pessoa tímida mas deitar à página vadia as agruras obscenas de um septuagenário, tido e havido com alguns clássicos, a leitura mourejada de Herculano na mocidade, o desde sempre Machado, entre outros passatempos absolutamente inclassificáveis, será, ainda que tardio, vero exercício de liberdade.

Esta mala, aqui, por exemplo, vês?,: livros, cadernos dos vint’anos, alguns exemplares da Revista da Semana, um soneto de Bilac copiado à mão pelo poeta Ascenso Motta, íntimo do parnasiano incomparável, ainda que ele mesmo fosse um renitente tardo-romântico. Morreu precocemente, o bom Mottinha,num acidente envolvendo tílburis, mulheres e alcoóis, aquele tempo em que tílburis, mulheres e alcoóis eram o que havia de mais doce e danadamente encantado nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Cousas mortas, geladamente mortas, para imitar o articulista notável que inda ontem levamos a campo santo, vítima da sífilis, dizem aos cochichos, ainda que a causa oficial, sabemos todos e as gazetas não nos desmentem, tenha sido “mal súbito”... O rosto desfigurado debitaram a insidiosa psoríase, rosto aliás a que muito poucos foi dado a ver descoberto, justamente os que sabiam tratar-se das escaras hediondas da Peste.

Cousas mortas, geladamente mortas.


Fragmento do romance “Amar-te a ti nem sei se com carícias"

Cartier Bresson


O verão dali em diante


Ainda não havia chegado a primavera quando fomos ver, às margens do murmuroso Cinza, os primeiros estremeceres do próximo verão em Vila Pequena. Eram sempre os índios que chegavam para dar a notícia: começava a nascer, irregular, e frágil como uma planta recém, boatavam eles, os índios,já meio bêbados, o grande verão do ano seguinte que nascente de novo se dava ao início nas margens pantanosas do velho rio. Ali onde, garantiam, outra vez acordava, invisível ainda, a brotação dos antúrios, os quais, na plena madurez do janeiro, chegariam, sobretudo os de turvo e ondulante veludo-de-bispo, chegariam a imitar a textura da pele do ventre de uma menina. La piel de danzarina, explicavam melhor os índios, porque “danzarina” era como chamavam, em sua língua azoada, aos antúrios nascidos dos charcos, aos antúrios desembestados de amor; nascidos, e de amor desembestados, dos charcos ferventes, salobros; charcos, alardeavam, de extintos vulcões que eles, sempre bêbados, entendiam fossem las dormidas montañas del diablo.

Audível já, falavam, às margens do rio, os prenúncios do certo verão, a irrupção das bolhas de enxofre e húmus feito tachos onde ebulisse a lama pastosa, e movediça, ou como as arrepiantes tinas-de-cobre que o aéreo professor Suarez, em seu nicho-laboratório dos fundos de casa, nunca tirava do fogo. Uma que outra vez, os quintais de Vila Pequena incendiavam.

O verão costumava amanhecer, assim, antes que amanhecesse o dia.

Era sempre ao final do inverno. Torcidas de vento, desfolhadas, as árvores da beira do rio ainda a nada alimentavam com suas sementes, que, no verão, incessantes cairiam na água, a fazer crescer os peixes pequenos. Em vão punham a boca, de peixe a boca redonda, rente à superfície do rio, para pedir, com uma insistência de minúsculos cães famintos, o sumarento mel das olívias salvajes. Negros mínimos grãos que, no janeiro fecundo, as ramas, pródigas, deitavam à água, com um miúdo estrépito de vento ou inseto à flor do Cinza remansoso.

Ninguém nunca foi ver a estroina zoada dos índios inventando que o verão já nascia, ainda que invisível, das alagadiças bordas do rio. Era então o brumoso inverno de Vila Pequena, com as chaminés das casinhas-de-madeira evolando a boa fumaça dos fogões à lenha onde aquecíamos as fatias de pão-dormido esfregadas na enregelada banha suína. Era a névoa e a constante garoa, o avô desde longe soando as botinas, o chapéu molhado, a puída capa de pano duro, entrando solene e rompante, a reperguntar à avó aonde é que estava a sua garrafada de mastruz, a cachaça curtida nos guizos da jararacambeva. De uma só talagada era que o avô tomava o mastruz, franzindo o rosto numa cara horrível, estalando a língua, o braço levantado, a mão no ar, surrando um dedo no outro alguma vez com violência.

Mas não há como a hora dentro das horas de um dia. E aquela hora foi o dia.

Guiados por um índio gordo, de nome Yupí, fomos ver o verão que, embora invisível, já fervia às margens do velho Cinza, de antúrios e de amor desembestado fervia, ao regurgito das grandes bolhas de lama e húmus. Mesmo bêbado, o índio disse que sabia aonde, e nunca que ia errar de caminho. Segundo ele, que embora muito borracho não deixava de falar coisa com coisa dentro, o verão se postava, transparência de brisa e nuvem, na sempre adiada curva do rio, a que sucede a próxima, aquela que vem depois desta outra e assim por diante até chegar ao infinito estio, ainda mais faiscante, e ainda mais definitivo, porque sempre incriado e porque sempre por acontecer e porque sempre por vir com sua orquestração de besouros e gorjeios e o ciciar das cigarras feito uma alvagaravia de trinos.

Excitava-nos o índio borracho, mas tão borracho, que ora era o mundo que pendia das árvores, ora eram as árvores que do mundo pendiam, farfalhantes, e Yupí escorava-se, gordo, de riso frouxo e cariado, a escorar-se nos quebradiços galhos da trilha, ainda assim não caía, mesmo que, partido ou envergado ao limite, o galho quisesse se despreender do mundo que oblíquo daquele jeito, não tinha jeito, todo girante oscilava e se movia. Andava o mundo a correr atrás de Yupí igual que, de asas, uma voante selvageria. Íamos também nós atrás dele, atrás de Yupí, nós e a nossa esperança cheia de dedos e agruras. Crentes na fé de que quanto mais borracho um índio, mais os segredos do verão ingerminado haveria de nos declarar, naqueles ermos; debaixo, aquele tempo, daqueles céus.

A flor da yuacanã, rubra feito uma brasa que o inverno apaga como quem apaga uma chama, foi o primeiro entrevisto do ainda inexestido verão aonde nos levava o borracho Yupí que a pisar todo aquele vacilante mundo, sua obesa carnadura, dizia e redizia que só com os olhos não iríamos enxergar como brotava, das pantanosas margens, o estio, igual que o ovo dentro de uma galinha. Era só ver, nas trilhas, nos caminhos, a brasa acesa da yuacanã para não duvidar de que nos levava, o gordo Yupí, ao certo lugar, ali onde o verão morava com sua côrte de águas, entes da nuvem e entes da neblina, branda malva, cachos e mais cachos de passarinho.

Era quase noite, nem de longe mais se avistavam as chaminés de Vila Pequena com os caracóis de fumaça de seus fogões e de suas cozinhas, quando ainda mais próximos, borrachos nós também, de tão borrachos os caminhos, começamos a ouvir o quase chilreio do murmuroso Cinza, anoitecido de estrelas e cercado de todo lado pelo coaxar da saparia. Agarrando-se a um tronco, Yupí fez com um gesto que, mesmo bêbado, indicava que escutássemos, em silêncio escutássemos, vejam só, por Tupã!, o que das águas de um rio.

E era ali que o verão, ainda não criado, já se enroscava aos caminhos.

Quietos e agachados, como ensinava o índio, foi então que paramos; o frio que nem mais frio era, só um fresco vento tocado de brisa, a nos envolver igual que uma manta tecida no bilro da noitinha maravilha, passamos a ouvir como a lama fervia, dela irrompendo os antúrios. Nada víamos, agachados na mata, só escutávamos no entrante luar que, por grande e prata, luar de inverno não era, todas as coisas as quais, mesmo borrachos, os índios nos relatavam nos declinantes invernos de Vila Pequena, feito aquelas histórias da noite em que o firmamento inteiro se fecha para que nele caibam, mais que as estrelas, todos os astros do céu e seu brilho.

E por nós passaram a passar sereias e curupiras, sabiás em fuga, rebelados canários, verdes boitatás de faiscante murmúrio, a água da fonte feito fosse dia, os ventos dos longes, quentes como o bafo de uma chaleira; e ali, de ouvir a ouvir, insistismos. E vimos que os vaga-lumes em profusão se acendiam, num lusco-fusco, num pisca-pisca, num alvoroço mais que de inseto no cio. Recostado a um tronco, a barriga a escapar da apertada camisa, o gordo Yupí, feito fosse sob uma lassa noite de verão, gozosamente dormia.

Quase deitados, na morna trilha, de areia fôfa e folhinhas, o ouvido no chão escutamos, vindo de longe, de novo uma algaravia de trinos e até hoje não sabemos se era mesmo o verão gestando suas rendas-de-estio ou tudo não passava de um sonho em que dormíamos no borrachoso sono de Yupí, bêbado de cinco dias, nossas noites sozinhas.

Do livro inédito “Racontos de Vila Pequena”

A permanência do Quixote

Nesses tempos bicudos, de desilusão e ainda maior desesperança, um antídoto possivelmente eficaz contra a hórrida “ambiência” que nos cerca, talvez seja a saga - que neste 2005 completa quatrocentos anos - de nosso muy leal cavaleiro andante Dom Quixote de la Mancha. Lutando contra moinhos de vento ou contra o vento mesmo, conforme o humor do dia, eis aí, senhores, uma (imperecível) lição de mais de quatro séculos!

Um clássico irretocável, nascido das mãos de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), é dessa ordem de livros onde o passar do tempo só os faz melhores. A exemplo dos bons vinhos, ou das nobres lições, as quais, por apostarem num humanismo de raiz, hão de permanecer para sempre eternas.

Inexiste, neste mundo de Deus, quem não saiba ao menos quem foi ou como foi o fidalgo Quixote. Confundido muitas vezes com o seu próprio autor, num hibridismo que será sempre a glória de qualquer artista, Quixote e Cervantes se misturam no imaginário popular.

Indispensável anotar, antes de mais nada, a gênese da impagável persona, sobretudo por se tratar do primeiro personagem literalmente pirado da história da literatura. Depois de ler obsessivamente todos os romances de cavalaria ao seu alcance, um gênero, aliás, mais popular na época do que as telenovelas de nossos dias, o pacato senior Alonso Quijano decide se transformar ( ou se transtornar?) ele também, por quê não?, numa espécie de heróico cavaleiro.

Mas como tudo é sonho e fantasia, e como animem o gênio de Cervantes a graça e o rigor da paródia mais desabrida, numa explícita gozação de toda a gasta literatura popularesca vigente, o seu cavaleiro andante é um cavaleiro andante destrambelhado e ensandecido. Ferina caricatura dos heróicos personagens que povoavam os devaneios dos leitores de então, Dom Quixote de la Mancha é, antes de tudo, um pícaro.

Um Jerry Lewis ou um burlesco Carlitos a andar as terras de Espanha, convence outro ainda mais pândego senhor, o gordo e troncho Sancho Pança, a lhe acompanhar, como escudeiro, na imperecível aventura de lutar contra as injustiças e as incúrias de seu tempo. Este o cerne e o âmago de um livro que aí está e aí continuará a desafiar os séculos.

Em cáustica paródia às portentosas alimárias dos heróis dos romances de cavalaria, a cavalgadura de nosso Quixote é magra e trôpega, e acaba por se inserir na história do imaginário da humanidade com o insopitável nome de Rocinante, hoje quase sinônimo de muar, cavalo, montaria. Retraduzido em quadros, esculturas, poemas, canções, quem jamais o esquecerá?

Outro dado de eternidade do gênio cervantino? A rude camponesa Aldonça Lourenço que, pela burlesca via do sonho no sonho do Quixote, se transforma na extraordinária amada Dulcinéia del Toboso. E, claro, para não errar de sonho, se afigura em heroína de singular beleza e raríssimo fulgor.

Quando a realidade é por demais inóspita, melhor inventar outra realidade. De preferência ardilosamente fantasiosa...

Do “Cahier d’écrivain”

In honore ordinis sancti benedecti

à ordem de São Bento
a ordem sabe que o fogo é lento
e está aqui fora
a ordem que vai dentro

a ordem sabe
que tudo é santo
a hora a cor a água
o canto o incenso o silêncio

e no interior do mais pequeno
abre-se profundo
a flor do espaço mais imenso

paulo leminski

Provérbio zen

A vida é muito vasta para que se apague assim como se apaga uma lâmpada. Ainda que a lâmpada se apague, fica a luz, esparsa e inelutável, fica a luz na sala.


Do “Cahier d’écrivain”

Nenhum som teme o silêncio que o extingue.

John Cage


Provérbio zen

Vê que a vida é uma grande ponte. Não constrói nela a tua casa.
Atravessa a ponte simplesmente.

domingo, 11 de novembro de 2007

Gustave Doré (1832-1883)


Baratas




As antenas são, das baratas, os seus intrumentos de esgrima. Furtivas, tímidas de uma timidez arisca e belicosa, entanto avançam pelo ladrilho da cozinha mal silenciem as louças na pia e o velho relógio se ponha a bater sozinho. Mais que perfeitos animais pré-históricos por pisos e assoalhos andam.
Suja barata peluda – nossos ascos, vossos nojos, nossa agrura ao rés do chão deste ladrilho e desta casa na zona norte, meu Deus, que de infames os ralos por onde andamos – ariscos, tateantes, um pouco cegos.

Do livro “Manual de Zoofilia”

Quino


Magritte


Cartier Bresson


Botero


Nadar (1820-1910)


Quino


Cartier Bresson