sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Quase três horas da madrugada quando apeou aos portões do Flamengo, o Dr. Ariosto. Grosso, grisalhado e peludo, Ariosto era a fina flor da medicina de Areias, no interior fluminense. Mandei-o chamar por sua reconhecida nomeada na qualidade de clínico de mulheres. Lavínia queixava-se de tontura e tremores, branca e de grandes olheiras, recusando-se a deixar a cama, o quarto. Chegamos a pensar uma inesperada gravidez, vinda assim ao gosto de casamento antigo e que sistematicamente recusara filhos, até esquecê-los que ainda fossem possíveis. Contudo fechei-me em copas – vá lá isto não se confirmasse e teríamos levantado à toa uma expectativa nervosa. Não queria somar ao já nenhum conforto, mais uma angústia.

Conduzi Ariosto ao quarto. Sentada na cama, enleada ao roupão escarlate, lá estava a minha Lavínia sendo cuidada pela creadagem. Confesso que segurei dentro uma ira súbita e bem fula – junto às gigantescas sombras que, fantasmais, cambiavam pelas paredes, os negros sugeriam-me urubus de agouro. Esfriou-me a boca do estômago repentino torpor e um pânico gasoso como que ameaçou desenrolar-se dentre as dobras do meu ser... – vá lá, caderno, – do meu ser assustado.

Não sei se pelo adiantado da hora, ou os aborrecimentos associados ao estado de saúde de Lavínia, senti como se a noite desabasse ao jardim a madrugada espessa, feito um bicho, uma lagarta cujos pêlos pudessem queimar a fina pele de vosso braço. Piara a coruja na espera agoniada de Ariosto noite adentro, o que não constituía sinal consolador. Agora silvavam morcegos enquanto Ariosto auscultava, de minha Lavínia, o coração temeroso. E punha tamanha intensidade ao sobrecenho, o velho clínico, enquanto apalpava e examinava, que mais um pouco supomos vê-lo que grave se nos dirigisse um diagnóstico fatal. Cousas da alma enferma, ali onde mora a culpa feito um bicho, outro bicho, ainda pior que a ácida lagarta, um bicho assim à maneira das lacraias e dos escorpiões, creame de vermes, ardendo de febre e de amoroso amor ardendo.

De que somos urdidos? Em que caviloso reparte de nosso cérebro, o ciúme feito uma ampola de veneno a quem o braço oferecemos? Pois ali, temeroso de todas as fragilidades de Lavínia, desejei que Ariosto indicasse alguma moléstia difícil, ainda que curável, mas que não, não me viesse com a conclusão simples de que aquelas eram cousas de mulher triste. –

– Dr. Leocádio José Prata, necessitamos exames complementares, aos quais, evidentemente, o senhor não poderá assistir, mas sua esposa, Dona Lavínia, encontra-se perfeitamente bem – disse Ariosto detrás dos pêlos, os olhinhos rútilos meio ocultos por espessas sobrancelhas, dessas que, desabadas, ainda retorcem e quase emplumam.

Passou-me ao omniographo da memória, umas que sombras – Lavínia abanando-se detrás do leque cor-de-rosa, milagre da tarde ou do céu, a minha Lavínia, animada pela prosa com que Licurgo deitava lábia e charme, a última domingueira que nos reuniu cá no Flamengo, em torno do gamão e dos quindins da negra Afonsa. Indispensável acrescentar nestas páginas, ainda que só pela pura sensação do instante, já que estas folhas ganharão o bom silêncio das cinzas e do Nada mais ardiloso, o suco de amoras, um requinte que nem parecia brotar das mãos de unhas retortas daquela escrava velha e feia como o perigo. O suco de amoras, senhores – impossível esquecer.

A tristeza de Lavínia, pus isto comigo, insistente, era de outra origem – sabíamos, cada vez com maior freqüência, dos sintomas neurastênicos que acometiam as mulheres, sobretudo quando entravam em cena secretos desejos. Eu também devia levar a alma doente – roía-me dentro a aspiração que não se deve revelar nunca a um homem, a aspiração simples de cessar – de todo e de vez.

Enquanto aguardava que o Dr. Ariosto realizasse o que chamara de exames complementares, com o luxo profissional de quem desejava aproveitar a viagem e dar por concluídas igualmente as apalpações de rotina, o meu pensamento andou-me, atroz, e galopante, frio e vênus, lápide e aurora, um soneto de Bilac recitado à hora ebúrnea dos setembros de então, o meu pensamento – se tudo ia-lhe bem ao corpo, seguramente alguma cousa desequilibrava-lhe o coração...

Uma das creadas abriu a porta do quarto, as duas folhas, de uma só vez, como para facilitar a passagem de Ariosto, peludo e ogro, os olhinhos faiscantes semi-ocultos pelo grosso sobrecenho, toalha numa das mãos, a maleta preta na outra. Com um frio e automático meneio, num limite que não sabemos se de gratidão ou nojo pela negra, nem esperou que o conduzíssemos à porta, consultando o relógio de bolso e marchando incontinênti em direção à saída. De assim, quem seguiu atrás dele fui eu.

– Dr. Ariosto, tudo bem? Tudo mesmo na normalidade?
– Tudo, tudo, Dr. Leocádio José. Volto pelo sábado com alguns resultados clínicos. Pode ir dormir, amigo; e se achar necessário, ao lado dela... – ensaiou jocoso e um pouco biltre, o peludo Ariosto. Eu, de meu lado, não lhe achei graça.

Subindo de volta à caleça que o esperava ao portão, só vi, pela fraca lua a lhe iluminar a abundante cabeleira, – o que, ajunte-se, era um milagre para homem de sua idade –, que enfiando os dedos, de ambas as mãos, grenha adentro, Ariosto de Costa e Lima, como que penteou a juba de ordinário revolta.

Deixei-me ficar ainda ao portão vendo-o que desaparecia na noite pálida, ao tropel das bestas. O mar lá, sempre e sempre o mesmo mar, o mar do Flamengo contando-me então negros contos de horror e crime, fealdades medonhas.


Fragmento do romance “Amar-te a ti nem sei se com carícias”

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