sábado, 12 de abril de 2008


Quino

Flor Garduño

Gustave Doré

Paul Garfunkel: festa de polacos, 1979
NÃO HAVERÁ MAIS POLACOS?

Tenho para mim, que é sempre tempo de homenagear os polacos, esta gente que conosco construiu boa parte da mais recente história paranaense. Amo os polacos e tenho por eles uma empatia que, como dizia minha saudosa Helena Kolody (uma “quase-polaca”...), se perde “na trevosa noite dos tempos”.

Foi com eles, os polacos, que a família, recém-chegada do Norte pioneiro, migrantes de cara encardida e modos bugres, aprendemos a fazer as compotas de pepino, além do chucrute em folhas de parreira que embora não seja uma iguaria tipicamente polaca, eles dominavam à perfeição.

Nas discórdias, comuns nas vilas proletárias de então, nos xingavam --- “negrada!”; nós, de nosso lado, cuspíamos o insulto escabroso --- “polacada azeda!”... No fundo, e na superfície, em tudo éramos iguais. E a nostalgia bate espessa a cada vez que, por um motivo ou outro --- agora, foi uma comovente exposição no Museu Paranaense, chamada Raízes do Paraná ---, me vejo às voltas com eles, os polacos. Misturou-se nossa vida de tal modo à deles que, por vezes, me sinto um polaco inteiro...

Por certo não é índio, nem bugre, o sentimento em que me flagro, com freqüência, a chorar pitangas e amoras. Também me vem deles, dos polacos, e sinto isso quase como uma matéria táctil, o incurável lirismo que já me integrou o perfil e o jeito --- irreversivelmente.

Não para menos, leitor: ao tempo em que, crianças, ainda existiam os filhos de legítimos polacos vindos da velha Polska, me criei com eles, rolando nas brigas infames no chão de terra da Visconde de Nácar; ao lado deles estudei nas escolas públicas; com eles, o jogo do bafo das balas Zéquinha.

Além, claro, do privilégio de conviver, da adolescência até o último dia de sua breve vida, com, dos polacos, o mais insigne --- o poeta Paulo Leminski. A quem eu chamava de “Pablo”, como a seu irmão, outro polaco inolvidável, que, sendo Pedro, passou a se chamar “Piotr”, entre os íntimos.

Com ambos revirei as noites cachorras da Curitiba daquele tempo e pusemos, mais de uma vez, nossa vida ao avesso, não é mesmo Jaime Lechinski? Ou me desminta aí poeta Thadeu Wojciechowski! E juntos compusemos sonetos, canções, haicais. E nos passeios e escaladas ao Marumbi, melhor do que nós ou a memória de nós, que o digam mochilas, violões, estrelas...

Olho lá longe, e em meio à lembrança de meus mortos queridos, o que vejo lá é mais que um quadro de Andersen invadido pelo entardecer de Curitiba. Na memória antiga, vislumbro, como a uma fotografia, a velha “ômama”, lenço na cabeça, sentadinha numa solitária cadeira posta no quintal, o avental sobreposto ao comprido vestido até os pés - estes, por sua vez, enfiados nas meias e nos chinelos. À volta dela, muito eretos, rindo, sujinhos, as franjas cor de milho, quatro ou cinco polaquinhos
--- endiabrados.

Olhar lá atrás, assim, é quase uma lágrima.

(Ao Thadeu Wojciechowski)

Texto publicado como posfácio do livro "A Banda Polaca", de Dante Mendonça

quarta-feira, 9 de abril de 2008


Nicholas Hughes
Kasimir Malevich

Jitet Koestana

No meio do mato
a flor branca
seu nome desconhecido

Haicai de Shiki (1869/1902).


Tradução de Maurício de Arruda Mendonça.

O poeta cubano José Kozer
LA CUEVA DE ALADINO


No cuento nada ni cuento para nada:

veinticuatro horas después di
otra vuelta alrededor de una forma
ovoide, madre original: me
entretuve viendo acabarse
el ser (individuado).
Cachumbambé (otrora).
Mecedora (allá). Temprano,
la playa (era) a la tarde la
terraza. Y ya me cayó encima
anoche la noche (ovoide).
Aplastante. Cefalalgia. El
sistema nervioso hecho un
pingajo. Inapetencia. Insomnio.
Nunca imaginé esto iba a ser
así de divertido. Y ando
implorando no quede rastro de
las vueltas dadas día a día,
todas se semejan (en la madre
ovoide) a lo ovoide de las
vueltas, nunca (en el fondo)
salí (del fondo). Variaban los
libros, yo no; seguía en pie
rigiendo el desconocimiento:
la propia fruición de la lectura
acabó por convertirse en tara
propia, inercia de la efigie
tocada de orín, violada ahí
dentro por la carcoma. A
pedazos me estoy yendo
al traste. En hora roma
me atasco. Lechuza que
no ulula. Los indicios
son claros: comienza ya
el final. Un determinismo
ingente quién lo diría rige
el Universo. Mi padre
comió chicharrones,
toneladas de carne de
vaca, y a mí el colesterol
me mata: la clave en blanco
es la Muerte. Bravo. La
brava. Vaca roja del israelí
en el desierto. Ya que esto
se acaba, raja, me voy a
largar despotricando, cantar
el manisero cagándome en
mi estampa. Hiela afuera,
nada riela: la lechuza sucumbe
en vastedad a su propio
enmudecimiento. No salir de
la cueva (jamás) de la espesura.
La lechuza enzarzada en su
matorral. El ojo invidente en
una recámara egipcia donde
duerme ya en mi nombre hace
eones el Faraón. Alma dormida,
recuerde: atónito, miro, ay no,
y cierro a cal y canto los ojos,
me obligo a volver de lleno,
entre cimeras, paramentos, los
infantes de Aragón, al centro
hueco, azul incombustible, del
sueño. Llevo un rato pensando
en los últimos años del pintor
William Turner: fue un sabio
natural, a rabiar. Haré y haré,
hari hari, poemas hasta el
final. Turner en Londres.
Margate. Me quedo en
Hallandale. Da igual. Aguantar
hasta reventar. Y nada de
visitas. Nos aguan la fiesta,
desordenándonos el día: y el
presupuesto. Dando sablazos.
Mundo indigesto. No lo trago.
Un mundo metiendo baza
donde no lo llaman. Habrá
un solo entierro al que llevaré
mi propia vela. Juan Lanas,
sin tierra: señor feudal de un
erial donde pasto (seré) de
las llamas (pagué todas las
cuotas de mi incineración).
Bailoteo. Gesticulo. Canturreo.
Vuelta más, vuelta menos,
en la ovoide. Proa al fuego,
dos lloronas (no muy bien
remuneradas): y una madre
intercesora revolviendo las
brasas.



José Kozer

Minha mãe, que era uma cozinheira de quatrocentos talheres, insuperável na igualmente insuperável culinária cabocla, costumava decretar, definitiva, que jamais honraria a cozinha quem não soubesse fazer, com talento, um arroz branco.

Desnecessário acrescentar o sublime arroz de D. Cida --- clássico, sem ademane, a nua simplicidade de um haicai. De se comer puro, só ele, feito fosse o prato principal.

Arroz incrementado, segundo ela, era tudo, menos arroz. Ou então, ironizava, abobado risoto colorido com vergonha de ser arroz... Xiita, a minha saudosa velha, nas coisas e loisas da cozinha. Frango, só o caipira; milho-verde, só o colhido no quintal, ou vindo da roça.

Minha governanta, a germana Jesse Brek, que, face ao tema, se não aparecer aqui, é capaz de entrar em greve, anda a concorrer com Matisse na disposição da mesa cá no Palacete do Tico-Tico. A cada refeição, um arranjo floral. Esses tempos, creiam, conseguiu montar um sol modernista, com pétalas de cebola e compridas tiras de cenoura. No centro, o redondo recorte de uma fatia de berinjela.

Se minha mãe era xiita no conteúdo, Frau Brek é uma fundamentalista do visual culinário. Como os japoneses, acha que a gente come primeiro, e antes de tudo, com os olhos. Boca, paladar, e até dentes, são importantes, mas vêm depois, se é que interessam vir. O que importa é a beleza inútil da poesia.

Por falar nisso, dizem, por aí, que nosso Dante Mendonça é um menestrel do forno e do fogão. Ainda não me foi dado provar suas iguarias. Mas sei que há um frango que é dele a melhor estrofe. Se é que não trouxe da Itália, onde passou as férias, e nos deixou em enorme vacância, inédito pitéu, prestes a ser anunciado...

Eu, de meu lado, quando budista, com o propósito de seguir o preceito de que todo homem deve entrar, ao menos uma vez por semana, na cozinha, tentei alguns pratos. Sou bom de frango-xadrez e não me saio de todo mal em algumas carnes ao shoyo. Aprendi que está no tempo exato de cozimento o segredo da comida chinesa, que tem de passar pelo estômago com a leveza de uma garça de Kobaiashi Issa.

Perdi o budismo e a paciência, mas não perdi o gosto por esta culinária que, embora os preços abusivos, ainda a freqüento, com a parcimônia que me permitem a disponibilidade e o bolso; mais o bolso que a disponibilidade. E ando com saudade do porco agridoce do adorável Kazuo Hidecki.

Em matéria de comida, saudade tenho sempre, e de muita gente --- do Jaime Lechinski e seus macarrões à bolonhesa; dos enfeitiçados rosbifes do saudoso Gilhobel de Camargo, mestre dos mestres; das irrepetíveis sopas-de-cebola do Jamil Snege, que chegou a ganhar as páginas da revista Claudia; das peixadas do Mazzinha; do gulache do Gilberto Rosenmann; do steak au poivre da Gleuza Salomon.

Agora, saudade, mas saudade imperecível, leitor, esta é do arroz de minha mãe.


Crônica de Wilson Bueno para O Estado do Paraná --- 6 de abril de 2008.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Bispo do Rosário (1911/1989)
A OBRA DE BISPO DO ROSÁRIO

Minha mãe era tapeceira e restauradora e, por isso, eu cresci em volta da magia da agulha e da linha. Dela eu herdei esta idéia de reparação como uma parte de minha arte. Minha costura é uma ação simbólica contra o medo de ser separada e abandonada. Nós percebemos no trabalho de Bispo do Rosário que ele também tinha medo de perder o contato. Como Penélope e a aranha, ele passou a vida inteira fazendo e desfazendo. Ele estava buscando uma ordem no caos, uma estrutura e ritmo do tempo e do pensamento. Pode-se dizer que buscar uma garantia de sanidade é o princípio da organização atrás de todo o seu trabalho.

Eu adoro o azul de Bispo do Rosário porque o azul é uma das minhas cores. Fiquei fascinada ao saber que a linha azul que ele usava vinha do uniforme de seu hospital psiquiátrico. Ele tinha a capacidade de incorporar um objeto da sua vida de confinamento e transformá-lo num objeto simbólico de sua auto-expressão, mistério, beleza e liberdade.


Louise Bourgeois

Onde está você?


Anne Arden McDonald


pequeno
tinha um pensamento

a selva
quando crescer

em algum lugar
na selva

corre grande
um pensamento



Alice Ruiz

terça-feira, 1 de abril de 2008


Origens da escrita chinesa

Blogs e blogueiros

Ontem, era o bar; hoje, as pocilgas eletrônicas parecem substituir, com maior ou menor eficácia, o encontro da elite artístico-intelectual daqui e d’além mar. Ontem, a boemia, quase sempre estéril; hoje, a interlocução acossada e enriquecedora dos blogs da rapaziada.

Com uma diferença, em todos os sentidos essencial: o bar, restrito a uma geografia urbana, não ia além da madrugada; nos blogs viajamos, virtuais, no espaço e no tempo. O Piauí é logo ali; Manhattan e Madri não saem mais do meu quintal.

Impensáveis há poucos anos, os blogs viraram mania universal. Perceba o gentil cavalheiro que me lê as mal passadas - eu disse “universal”... Tudo, em nossa insensata aldeola, sabemos, virou “universal”. Até as guerras, antes tão remotas, têm suas bombas e entreveros a nos acontecer na sala.

Imagina, então, a obsessão blogueira que nos anima os dias... Postam-me (este o verbo a substituir o “publicar” dos textos d’antanho...), capítulos, frases, poemas, até mesmo na Eslovênia --- sempre em espanhol que, para quem não sabe, é hoje a segunda língua mais conhecida no mundo. E como escrevi um livro em portunhol, o Mar Paraguayo, méritos literários à parte, ando o mundo.

Agora somos todos internacionais. Te cuida, Mick Jagger!... O ensaio de uma recente performance minha, em São Paulo, de um blog chileno passou ao YouTube. Deste, a dezenas de blogs de todo lugar: 117 acessos no YouTube em menos de dez dias! Para este pequeno pintor, um recorde impensável.

Justiça se faça, logo, ao muito nosso Almir Feijó. Pioneiro com o site Descríticas (www.descriticas.zip.net), já pontuou um milhão de acessos, seja como “sítio”, como diz o Nêgo Pessoa, seja como blog. Não é pouca coisa.

Eu mesmo, embora colaborador fixo de um dos mais concorridos sites de nuestra América, o Trópico, do UOL (www.uol.com.br/tropico), só acredito, contudo, que “estou publicado” quando pego um jornal e nele cheiro a tinta do que escrevi. Pois até eu já possuo, alvíssaras!, um blog (www.diariovagau.blogspot.com), onde publico, vez ou outra, alguns inéditos e indico algum Caetano ou um que outro David Lynch.

Mas é, senhores, no blog do Solda (www.cartunistasolda.blogspot.com) que nos encontramos, todos os dias. Os de nossa geração e os filhos e os netos dela, e daqui a pouco os bisnetos da própria, para celebrar do nu em pêlo à crônica, do Horror Bush às fotos da hora, das figuras da city aos célebres do dia, sem falar de charges, sonetos, haicais.

E, vez em sempre, vamos a Santa Catarina, comer lagosta com o insopitável Vinicius Alves, e o seu não menos insopitável (www.lesma-lerda.blogspot.com). E ao Tadeu Barreirinha, à Estrela Leminski, ao Karl (www.nautikkon.blogspot.com), ao Campana, ao Noblat...Uebas! Tanto melhor: aqui, em Floripa, ou na Eslovênia, tem novo endereço o nosso bar!


Texto de Wilson Bueno publicado originalmente no dia 30 de março de 2008, em O Estado do Paraná.