sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Pavões


Em que outro céu, rumor de estrelas, moram, novas, as aves-do-paraíso? Cada pluma, uma pena de escandalosos olhos estrelados, refletindo a tarde e o luminescente azul da cor do dia.
Cacarejas de um lado a outro, impaciente, andando o viveiro, de olhos tensos, e pequeninos; e a insistentes bicadas, furiosas ao sol, laceras-me a carne do braço. Protejo o pescoço de um golpe mortal e, em legítima defesa, já lanho vossa carótida com desusada fúria.
Fomos tão lindos, maravilha!, e as manhãs impetuosas, maravilha!, faziam-nos da cauda em leque a pronta construção de uma vida admirável.
Difícil mirar de nós os pés – tronchas garras cinzas presas ao chão com a tenacidade comovida de quem apostou – de vez – que o futuro é só uma paisagem aziaga.
Não foi de vôo nem desassombro o lamento em que, presos às coisas gastas e vãs, contentamo-nos com nossos leques coloridos e não ousamos, uma vez sequer, passar da beleza emplumada à essência primeira de um novo fascínio, e verdadeiro.
Aves terrestres, sequer cantamos.
Do livro "Manual de Zoofilia"

Guepardos


Perdidos do bando, feito uma sina, transpusemos já não sei quantas savanas. Os dois, só nós dois. Magros e de pintalgadas manchas sobre o pêlo rude, à sagacidade do vento, guepardos, ondulamos - vôo? - sob o céu. Só não sei, talvez em razão da pressa, quem, de nós dois, o primeiro mortal. Severo equívoco imaginar que desapareças de mim; que antes de mim findes - impunemente. Antes de mim? Como? Num balé de ágeis impulsos somos só uma felina espécie de caça. Aves?
Vejo a morte amadurecer em vossos olhos quando percebo que sobre eles passa uma sombra (nuvem da tarde?), rápida, quase invisível. Atravessa-te a íris-de-mel, a sombra, e já enevoa vossos olhos dourados.
Engalfinho-me em você, teso desejo, e vos mordo a nuca a dilaceradas dentadas.
É assim que me subjugas, me humilhas e me achacas por guardar dentro o aguilhão do sexo. Nem desconfias que quem capitula sou eu, baixo a fissura explícita de vos amar escandalosamente.


Do livro “Manual de Zoofilia”

Pelicanos




Os pelicanos são como avis raras, e moram, em seu silencioso coração, as reticências.
Arcar com o severo pesadume do bico é, deles, dos pelicanos, uma insubstituível marca e, de certo modo, um glorioso acinte. Pudessem, não envergariam pela vida afora os bicos como trombas tristes e nem exibiriam as longas melancólicas pernas feito uma humilhação compulsória.
Ah, guardam, no escuro papo guardam uma esmeralda viva e sonham por nós o sonho oblíquo de que sendo sumamente feios, de físico e de feição, nós, os dois, neste lago merencório, alcancemos soar, quem diria?, perfeitamente escarlates.
Voar não podemos dada a complexidade do corpo contra a magra asa. Assim, jaburu, o nariz e a dilatada marca de teu lábio inchado.


Do livro “Manual de Zoofilia”




desejo

senhor Bananeira
olha uma luz por mim
adaga em Pequim

quero ver o firmamento
azul como um pensamento



Do livro de tankas “Pequeno Tratado de Brinquedos”

Matisse




crepúsculo

os peixes vermelhos
passou o poente sobre eles
de tinta escarlate

cor de prata eram no lago
antes da agonia da tarde


Do livro de tankas “Pequeno Tratado de Brinquedos”










indiscrição

lua na vidraça
espia dentro do quarto
o corpo da moça

o corpo dentro do corpo
o quarto dentro do quarto


Do livro de tankas “Pequeno Tratado de Brinquedos”