domingo, 25 de novembro de 2007


A permanência do Quixote

Nesses tempos bicudos, de desilusão e ainda maior desesperança, um antídoto possivelmente eficaz contra a hórrida “ambiência” que nos cerca, talvez seja a saga - que neste 2005 completa quatrocentos anos - de nosso muy leal cavaleiro andante Dom Quixote de la Mancha. Lutando contra moinhos de vento ou contra o vento mesmo, conforme o humor do dia, eis aí, senhores, uma (imperecível) lição de mais de quatro séculos!

Um clássico irretocável, nascido das mãos de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), é dessa ordem de livros onde o passar do tempo só os faz melhores. A exemplo dos bons vinhos, ou das nobres lições, as quais, por apostarem num humanismo de raiz, hão de permanecer para sempre eternas.

Inexiste, neste mundo de Deus, quem não saiba ao menos quem foi ou como foi o fidalgo Quixote. Confundido muitas vezes com o seu próprio autor, num hibridismo que será sempre a glória de qualquer artista, Quixote e Cervantes se misturam no imaginário popular.

Indispensável anotar, antes de mais nada, a gênese da impagável persona, sobretudo por se tratar do primeiro personagem literalmente pirado da história da literatura. Depois de ler obsessivamente todos os romances de cavalaria ao seu alcance, um gênero, aliás, mais popular na época do que as telenovelas de nossos dias, o pacato senior Alonso Quijano decide se transformar ( ou se transtornar?) ele também, por quê não?, numa espécie de heróico cavaleiro.

Mas como tudo é sonho e fantasia, e como animem o gênio de Cervantes a graça e o rigor da paródia mais desabrida, numa explícita gozação de toda a gasta literatura popularesca vigente, o seu cavaleiro andante é um cavaleiro andante destrambelhado e ensandecido. Ferina caricatura dos heróicos personagens que povoavam os devaneios dos leitores de então, Dom Quixote de la Mancha é, antes de tudo, um pícaro.

Um Jerry Lewis ou um burlesco Carlitos a andar as terras de Espanha, convence outro ainda mais pândego senhor, o gordo e troncho Sancho Pança, a lhe acompanhar, como escudeiro, na imperecível aventura de lutar contra as injustiças e as incúrias de seu tempo. Este o cerne e o âmago de um livro que aí está e aí continuará a desafiar os séculos.

Em cáustica paródia às portentosas alimárias dos heróis dos romances de cavalaria, a cavalgadura de nosso Quixote é magra e trôpega, e acaba por se inserir na história do imaginário da humanidade com o insopitável nome de Rocinante, hoje quase sinônimo de muar, cavalo, montaria. Retraduzido em quadros, esculturas, poemas, canções, quem jamais o esquecerá?

Outro dado de eternidade do gênio cervantino? A rude camponesa Aldonça Lourenço que, pela burlesca via do sonho no sonho do Quixote, se transforma na extraordinária amada Dulcinéia del Toboso. E, claro, para não errar de sonho, se afigura em heroína de singular beleza e raríssimo fulgor.

Quando a realidade é por demais inóspita, melhor inventar outra realidade. De preferência ardilosamente fantasiosa...

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