domingo, 25 de novembro de 2007


De cousas e propósitos


Ultimamente tenho acordado não para o que sou mas para o que penso que sou. Desse modo, entre a vigília e o sono, nas manhãs de agora, debato-me, suarento, sob o cobertor; imagino um incêndio em África; comprida uma sanguessuga enrola-se ao rijo dedo do enforcado apontando contra mim a sua sentença, de um jeito inusual entre os enforcados, o cotovelo cosido ao ventre, a mão aberta, igualmente dura, indicador e polegar apontando-me como se brinca de apontar arma de fogo. Esquiva esgueira-se, de novo, a figura de um homem, todo curvo, fugitivo, escondendo o rosto adunco atrás da gola erguida do casaco mais o anteparo do chapéu que escorrega sobre a testa e se lhe cobre assim de uma maneira meio cômica o furtivo olho esquerdo.

Sou só um homem num quarto do hotel Majestic, devo dizer, antes de prosseguir neste arrazoado aqui destinado ao fogo que lhe darei ao fim e ao cabo. Considero-me pessoa tímida mas deitar à página vadia as agruras obscenas de um septuagenário, tido e havido com alguns clássicos, a leitura mourejada de Herculano na mocidade, o desde sempre Machado, entre outros passatempos absolutamente inclassificáveis, será, ainda que tardio, vero exercício de liberdade.

Esta mala, aqui, por exemplo, vês?,: livros, cadernos dos vint’anos, alguns exemplares da Revista da Semana, um soneto de Bilac copiado à mão pelo poeta Ascenso Motta, íntimo do parnasiano incomparável, ainda que ele mesmo fosse um renitente tardo-romântico. Morreu precocemente, o bom Mottinha,num acidente envolvendo tílburis, mulheres e alcoóis, aquele tempo em que tílburis, mulheres e alcoóis eram o que havia de mais doce e danadamente encantado nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Cousas mortas, geladamente mortas, para imitar o articulista notável que inda ontem levamos a campo santo, vítima da sífilis, dizem aos cochichos, ainda que a causa oficial, sabemos todos e as gazetas não nos desmentem, tenha sido “mal súbito”... O rosto desfigurado debitaram a insidiosa psoríase, rosto aliás a que muito poucos foi dado a ver descoberto, justamente os que sabiam tratar-se das escaras hediondas da Peste.

Cousas mortas, geladamente mortas.


Fragmento do romance “Amar-te a ti nem sei se com carícias"

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