sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Gustave Doré (1832-1883)


Ouríssas

Eu, Khorn Gachet, respiro aqui na ilha de Ouríssas e acho que o Deus é aquele que está no quartzo, mas não é o quartzo; é aquele que está na baleia jubarte, mas não é a baleia jubarte; é aquele que está na respiração de Khorn Gachet na ilha de Ouríssas, mas não é nunca – o Deus –, a respiração de Khorn Gachet na ilha de Ouríssas.

Porque Khorn Gachet sou eu e sei que não existo. O que há é o Deus se fazendo de desentendido, um braço de mar atrás das montanhas que circundam a baía e algumas estrelas cadentes que despencam do escuro céu das noites de Ouríssas se Dona Lua não nos deu o ar da graça.

Eu, Khorn Gachet, respiro as luas de Ouríssas. E se é tormenta em mar sinistro, deito ao convés de minha galé errante, posto que, em Ouríssas, não sou o Deus, mas o olho Dele na escotilha – se me faço entender, se me faço entender melhor.

Ouríssas é pequena como uma pedra sob o sol, ao largo dos promontórios de Khür, que ruem sobre as águas, em estrépito contínuo. E povoam, a ilha, os pássaros, além de servirem generosamente, a mim, Khorn Gachet, e à minha não pequena distração, momentos de intenso devaneio ou dessa coisa precária e insuficiente a que chamam alegria.

A última vez que eu, Khorn Gachet, medi, a passos, o diâmetro de Ouríssas, cruzando-a de Leste a Oeste em busca de seu equador perfeito, trombei com nuvens que me fizeram tornar à galé, alguma vez ferido de seus raios e elétricos, estrondos de estilhaçar um coração mais fraco. Eu, Khorn Gachet, também da estirpe militar dos Bragança, logrei resistir aos feitiços de Ouríssas.

Nas noites crivadas de morcego, e sem lua, só o barulho do mar à praia, a hora sabendo a sal, duas vezes ao menos amarrei-me eu mesmo ao mastro da galé, único recurso para não sucumbir ao chamamento terrível das águias e do brilho delas em metálico prata, das águias que silvam, às centenas, cruzando o céu de Ouríssas feito uma chuva diagonal do abismo.

Não crocitam nem piam as águias de Ouríssas, sereias de asas; antes nos convocam a um cio de penas e penachos; escruciante maneira com que o instinto clama por um gozo que é farpa, que é farpa e chama.

Em Ouríssas, afinal, alcançamos, eu Khorn Gachet e meus navais, vencer o pior – a nós mesmos.

E por isso, os navegantes de Hérida somos tão orgulhosos desta ilha próxima ao incessante ruir dos promontórios de Khür. Antes que tudo afunde – de uma só vez e golfada. Ouríssas, Ouríssas, meu amor.


Do livro inédito "Ilhas"

Albert Koetsier


26

Amor, sim:
Porque tudo é belo ---
A romã, o lábio, a fala, a cisterna.
Amor de amar
A casta flor do chão
E as reentrâncias do muro,
A manhã, a lua, a tarde.
Amor, sim:
Porque a cor do antúrio
Conta uma história serena
E amar o calmo confirma
O ânimo, os deuses que riem
À sombra das árvores
Do jardim de Parmênides.
Amor, sim:
Porque, amorosa, até a nuvem,
Ainda que gasosa acolherá
Meus todos, meus plenos, teus inteiros.


Do livro "35" (poemas de amor)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Origens da escrita chinesa
A VIDA CURIOSA DAS PALAVRAS

A maioria dos dicionários etimológicos costuma nos dar o princípio das palavras de um modo quase sempre frio e sucinto. Não há charme nem gozo – as palavras, em estado lexical, lá estão – marcadas, quase sempre, pelas datas de seu surgimento e/ou de seu uso corrente, em abreviados e desengraçados parênteses.Apesar de não abandonar nunca os meus inseparáveis Antenor Nascentes e Antonio Geraldo da Cunha, dois celebrados monstros da pesquisa etimológica, impossível não denunciar, contudo, a “frieza” inerente aos velhos dicionários ou a sua inextricável limitação.

Não tome, entretanto, meu bom leitor, em hipótese alguma, a assertiva, como perfídia; não, é só uma constatação – gelada feito um pepino.Mas isto está por um fio – nas livrarias brasileiras já pode ser encontrado o produto final de sete anos do incansável e diuturno trabalho de um jornalista que só não se tornou filólogo por acaso. Falo do carioca Márcio Bueno, que não é meu parente mas o autor do mais que delicioso “A Origem Curiosa das Palavras” ( José Olympio, 264 págs, R$ 34,00, formato 16 x 23 cm) – extenso e acordado projeto que além de consumir quase um decênio da vida e energia de seu idealizador, posso assegurar, leitor, é barato garantido para quem nele viaje e em seus intrigantes verbetes.

Coisa que podemos fazer, em primeira mão, aqui e agora, só para dar uma idéia, ainda que pálida, do que seja esta “etimologia para milhões”. A melhor maneira, aliás, de fazer interessante a qualquer pessoa o rico patrimônio da última Flor do Lácio, como chamou à língua pátria, em decassílabos perfeitos, o nunca assaz louvado Olavo Bilac, num soneto pra lá de famoso.

A palavra alameda, por exemplo, leitor – atualmente designa rua ou avenida tendo às margens qualquer tipo de árvore. No começo o nome era aplicado somente a vias sombreadas por “álamos”... Já alarme, nos ensina Márcio Bueno, procede da expressão all’arme, que significa, em bom italiano, “às armas”. O brado era usado para que uma tropa militar se armasse com vistas a se defender ante a iminência de uma investida inimiga...

Quando chamamos alpinista ao nosso herói Jorge Niclewiecz, que já chegou ao topo do Aconcágua, só não erramos porque o uso sistemático da palavra a incorporou ao idioma, posto que “alpinista”, na origem, era só para designar quem escalava os Alpes... Tanto assim que no espanhol de nuestra America um sinônimo para alpinista é “andinista”, uma clara referência aos Andes...

Biruta, esta uma descoberta exclusiva de Márcio Bueno, é, sabemos, um saco de lona cônico que, nos aeroportos principalmente, é fixado no alto de um mastro para indicar a direção do vento. Em razão de seus movimentos, muitas vezes descontrolados, o termo acabou por designar também “pessoa amalucada”. E não o contrário, como muita gente pensa...

E quem poderia supor que a palavra canalha tem a ver com “cachorro” ? Pois tem, e muito, leitor. O termo deriva do italiano, de “canaglia” – cachorrada, cachorrice, cachorreira... Já dundum – aquela bala que quase matou o Ronaldo Reagan, e que explode no impacto, muitos aí podem estar pensando ser um vocábulo onomatopaico, isto é, que imita o som que produz, como “xixi”, por exemplo. Quem assim pensou, errou – “dundum” vem do nome da localidade indiana Dum Dum onde foi desenvolvido o projétil...

E xará, então, vejam que coisa curiosa – usado para designar “homônimo”, vem do tupi onde “xe’rerá” quer dizer “meu nome”. Tão curioso quanto a etimologia de xereta que procede do verbo “cheirar” e designa o indivíduo que vive metendo o nariz onde não é chamado... O que não é o caso, – ouviu professor Albino Freire? –, nem do “xe’rerá”.

Bueno, autor deste impagável “A Origem Curiosa das Palavras” e nem deste outro Bueno que em vez de dissertar sobre fugacidades, o seu legítimo ofício, mete-se hoje aqui a demarcar a origem das palavras...


"O Estado do Paraná", domingo, 22 de junho de 2003

Prêmio APCA de Literatura

O livro “A copista de Kafka”, de Wilson Bueno, acaba de ganhar o grande prêmio de literatura (categoria Conto) da Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA, como melhor lançamento de 2007.

O livro foi publicado pela Editora Planeta.
Paulo Leminski e Alice Ruiz
Ver e escutar Paulo Leminski
http://www.youtube.com/watch?v=oEXklTvm3aU&feature=related

domingo, 9 de dezembro de 2007

Mandala
JAMIL

Agora, Turco, que você não morre mais, entabulo contigo esta breve conversa no escuro. E te confesso, mal sei por onde começar – tanto a vida andou conosco, e tanto tempo, meu Deus!, que temo errar de mão e pôr isto aqui em lágrimas, a última coisa que você desejaria de nós, os teus amigos, mesmo sob o signo da cumplicidade que nos embalou esta vida cachorra durante quase 40 anos. E que agora, sem dó nem piedade, a morte horrível usurpa, trai e vilependia.

Desnecessário dizer que o teu riso mordaz – pronto a transformar em pó de traque a caretália dominante –, fica conosco – mais lição do que lembrança, e a ternura com que você se debruçava sobre nossos toscos textos ou a nossa vida pessoal tanta vez dilacerada, não haverá, por certo, quem os substitua – a um ou à outra. Esta conversa no escuro talvez seja maior que nós e denuncie Deus com uma veemência – desusada em nós quando se tratava do mistério e do Destino.

Lembro da gente feito dois meninos, o que, a rigor, nunca deixamos de ser, – moleques em nossa constante irreverência, imitando pompílias & valfridos, você que era capaz de rir até mesmo daquilo que o matava. Que dizer de si ou dos amigos que o amaram sempre com um admiração alguma vez atônita e desesperada?

Não tenho outro modo para situar a tua passagem por nossas vidas senão lembrando que você foi o desvelo, a promessa, a sempre renovada esperança. E a tua generosidade, sobretudo a tua generosidade intelectual, há de nos servir de guia e caminho. Este, sem dúvida, o teu maior legado, ao pequeno círculo de amigos que o acompanhou praticamente por toda vida – de Fábio Campana a Nêgo Pessoa, de Pissetti a Roberto Requião, do saudoso Vinhóles ao igualmente saudoso e saltitante Perly, o dândi velhote que, um tempo, conosco levava a madrugada ao cais da aurora.

Os teus livros, estes hão de nos sobreviver a todos, porque você foi, Turco, aceite ou não, o melhor de nós, animado por uma chama a um tempo genial e diabólica. Não serão o teu enrustimento, a tua incurável timidez, capazes, garanto, de anular o que neles é alta lição da melhor arte literária, ali onde você foi, queira ou não, Turco, mestre consumado. Você sabe, também, que isto aqui não é, em hipótese alguma, um elogio fúnebre. No máximo, um preito de gratidão e de saudade...

Lembro de nós, lembro tanta coisa que juntos vivemos, e quase nem consigo ir adiante neste texto, Snege, posto que não alcanço me defender de mim mesmo, de minhas agruras e fragilidades. E se cá ponho as vísceras de fora, lúgubre, lutuoso, é porque você merece de mim esta pública confissão aqui – sentimental, talvez, aceito, mas que tem, ao menos, a salvar-lhe, a mais absoluta franqueza e a mais absoluta sinceridade. Disso não me acuse, Turco, de não estar falando a verdade.

Você vai fazer muita falta. Aliás, você já está fazendo muita falta. Continuarão por aí os falsos literatos armados só de vaidade e suficiência; a província continuará passeando as suas fabulosas nulidades oficiais, cheias de gestos e ademanes, talhadas em ternos impecáveis e sem alma alguma que as comova ou abrigue; seguirão, enfatiotados e arrogantes, os mediocrões medalhados.

Só você não estará mais aqui para rir na cara deles aquele teu riso espantoso – de dentes graúdos e agressiva barba grisalhada, chamando-os aos brios – no uso da mordacidade punhal com que você, aos babaquaras, não perdoava.

A pasmaceira, Jamil Snege, sem você, é e será só um osso – duro de roer.


"O Estado do Paraná", domingo, 25 de maio de 2003