domingo, 16 de março de 2008



Absurda, do czar do bizarro David Lynch
Ver Absurda,
de David Lynch

http://br.youtube.com/watch?v=P9Q7ZKH7G4A&feature=related

Miran

Matisse

Dick Swift
De sonho e reza-braba

Pesquisas recentes indicaram os sonhos como eficazes antídotos contra o estresse nosso de cada dia. Não sei em que medida isto ocorra. Estresse não me parece coisa que se cure com sonhos. Temos visto, no áspero cotidiano, que, não sendo da aérea matéria deles, o estresse é bem mais um pesadelo da vigília e de sua fatigada astúcia.

Não me canso de lembrar aqui minhas origens e, com elas, o resgate da infância primordial onde a vida mesma era sonho e punha todas as coisas encantadas. Minha avó cabocla, por exemplo, Maria Rosa Custódia de Senes, esta tinha a ciência dos sonhos na ponta da língua. Feito um talismã.

Sonhar com alguém chorando, não hesitava vaticinar: vinha ali dinheiro ou alguma mulher da família estava prestes a parir. Já sonhar com viagens tinha uma nota aziaga --- morte certa de compadres ou amigos. Sonhar com um passarinho, era casamento; sonhar com muitos passarinhos (ouviu, Rogério Dias?), anunciava grandes colheitas.

O rol de significados e significâncias, a partir do sonho, era, para a avó, quase inesgotável. Sonhar com chuva, o prolongamento do estio na roça seca; sonhar com alguém voando ou caindo do cavalo, não dava outra --- chegariam parentes há muito ausentes.

Também o saber, digamos, erudito, nos reserva coisas prodigiosas sobre os sonhos. Veja o leitor, esta, dos aedos gregos, bem mais interessante que as recentes descobertas da ciência moderna: a prova, entre outras, de que o Inferno existe --- incontestável nos demoníacos pesadelos vividos pela alma quando em sono profundo.

Por falar em alma, impossível esquecer o famoso soporífero da planta mandrágora, que, entre os caldeus, causava sono idêntico ao da morte...

Tão ou mais sábia, repito, era a velha Maria Custódia, rezadeira, benzedeira, “costurava” carne rasgada, além de capaz das mais incríveis simpatias para evitar “mau-olhado” que, aquele tempo, tinha outro nome --- “quebranto”. Sobretudo criança que não fosse protegida, adoecia gravemente.

Mas pior que mau-olhado, só picada de cobra e, contra ela, a avó tinha um antídoto feroz: “reza-braba”. Verdadeiros mantras caboclos que, incompreensíveis ao comum dos mortais, apenas ela sabia rezar, secretos na mente, secretamente aprendidos de cor.

Dona Maria Rosa Custódia de Senes faleceu em 1967, varada em anos, e descansa, ao lado de minha mãe, no Cemitério de Santa Cândida. Convivi em sua (doce) companhia a primeira década e meia de minha pobre existência e nunca a ouvi falar em estresse ou que sonho curasse estresse. E olha que de sonho e “reza-braba” ela entendia; e não entendia pouco.


Crônica originalmente publicada no jornal O Estado do Paraná, 16 de março de 2008

A copista de Kafka: Felice Bauer
Faço minhas as palavras de Boris Schnaiderman na orelha de A copista de Kafka: é um texto envolvente. Digo mais: fluente. Uma das virtudes que mais valorizo numa obra literária é a capacidade de liquidez do texto junto ao leitor, seu objetivo principal. Para oferecer prazer à leitura um texto deve ser capaz de penetrar – sem atrito – pelos nossos vasos comunicantes. Não se pense por isso tratar-se de um texto fácil. Não é essa a questão – pois até mesmo em Grande Sertão percebe-se esta característica (quase sempre associada ao ritmo).

Romancista experiente, Bueno faz uso de um jargão literário capaz de confirmar sua destreza com a palavra, ao levar a sério a máxima de que as dez primeiras linhas de um livro são fundamentais para se fisgar um leitor.

Vejam isso:

Conheci ontem o simpático senhor Franz. Olhou-me demoradamente os pés. Terá notado o defeito que tão insistentemente escondo e dele só dou registro nas páginas deste diário exausto? São grandes, julgo muito grandes os meus pés. Também não aprecio o meu nariz. Acompanha-me o rosto, como me acompanha a boca rasgada e as sobrancelhas proeminentes, mas não aprecio o meu nariz. Pareceu-me um homem encantador, o senhor Franz a noite passada, no apartamento de Brod. Gentil e magro, um perfeito cavalheiro. Guardei dele, com uma intensidade assustada, os olhos – muito negros e, às vezes um pouco alheados. Acho que nasceu ali uma amizade para toda a vida.

Trocando de narrador a cada capítulo, Bueno cria um estranho universo de sensibilidades numa seqüência de histórias espetaculares feitas do cotidiano mais surreal: o gato de cinco patas, o raivoso enjaulado na urna de vidro – e cá estamos de volta ao diário da copista de Franz Kafka. Livro-surpresa, este representa, sem dúvida, um upgrade na obra já consumada do escritor da Vila Tingüi. Assim é também na opinião do caderno especializado Prosa & Verso d´O Globo, que há duas semanas teceu elogios pesados ao livro.

O dream time paranaense – com Tezza, Valêncio Xavier, Pelegrini, Miguel Sanches e Wilson Bueno já merece uma coletânea. Estou esquecendo alguém?

Toninho Vaz, de Santa Teresa

George Seeley, 1910
volta

chove a chuva fina
lua névoa na neblina
chegamos a Ikedo

a casa de nossos pais
céu brincando de brinquedo