domingo, 25 de novembro de 2007

Andre Kertesz


Hilda Hilst aos sete anos


Ler o texto de Wilson Bueno
sobre Hilda Hilst no Trópico

Quino


Fernanda Montenegro


Philip Seymour Hoffman como Truman Capote



De cousas e propósitos


Ultimamente tenho acordado não para o que sou mas para o que penso que sou. Desse modo, entre a vigília e o sono, nas manhãs de agora, debato-me, suarento, sob o cobertor; imagino um incêndio em África; comprida uma sanguessuga enrola-se ao rijo dedo do enforcado apontando contra mim a sua sentença, de um jeito inusual entre os enforcados, o cotovelo cosido ao ventre, a mão aberta, igualmente dura, indicador e polegar apontando-me como se brinca de apontar arma de fogo. Esquiva esgueira-se, de novo, a figura de um homem, todo curvo, fugitivo, escondendo o rosto adunco atrás da gola erguida do casaco mais o anteparo do chapéu que escorrega sobre a testa e se lhe cobre assim de uma maneira meio cômica o furtivo olho esquerdo.

Sou só um homem num quarto do hotel Majestic, devo dizer, antes de prosseguir neste arrazoado aqui destinado ao fogo que lhe darei ao fim e ao cabo. Considero-me pessoa tímida mas deitar à página vadia as agruras obscenas de um septuagenário, tido e havido com alguns clássicos, a leitura mourejada de Herculano na mocidade, o desde sempre Machado, entre outros passatempos absolutamente inclassificáveis, será, ainda que tardio, vero exercício de liberdade.

Esta mala, aqui, por exemplo, vês?,: livros, cadernos dos vint’anos, alguns exemplares da Revista da Semana, um soneto de Bilac copiado à mão pelo poeta Ascenso Motta, íntimo do parnasiano incomparável, ainda que ele mesmo fosse um renitente tardo-romântico. Morreu precocemente, o bom Mottinha,num acidente envolvendo tílburis, mulheres e alcoóis, aquele tempo em que tílburis, mulheres e alcoóis eram o que havia de mais doce e danadamente encantado nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Cousas mortas, geladamente mortas, para imitar o articulista notável que inda ontem levamos a campo santo, vítima da sífilis, dizem aos cochichos, ainda que a causa oficial, sabemos todos e as gazetas não nos desmentem, tenha sido “mal súbito”... O rosto desfigurado debitaram a insidiosa psoríase, rosto aliás a que muito poucos foi dado a ver descoberto, justamente os que sabiam tratar-se das escaras hediondas da Peste.

Cousas mortas, geladamente mortas.


Fragmento do romance “Amar-te a ti nem sei se com carícias"

Cartier Bresson


O verão dali em diante


Ainda não havia chegado a primavera quando fomos ver, às margens do murmuroso Cinza, os primeiros estremeceres do próximo verão em Vila Pequena. Eram sempre os índios que chegavam para dar a notícia: começava a nascer, irregular, e frágil como uma planta recém, boatavam eles, os índios,já meio bêbados, o grande verão do ano seguinte que nascente de novo se dava ao início nas margens pantanosas do velho rio. Ali onde, garantiam, outra vez acordava, invisível ainda, a brotação dos antúrios, os quais, na plena madurez do janeiro, chegariam, sobretudo os de turvo e ondulante veludo-de-bispo, chegariam a imitar a textura da pele do ventre de uma menina. La piel de danzarina, explicavam melhor os índios, porque “danzarina” era como chamavam, em sua língua azoada, aos antúrios nascidos dos charcos, aos antúrios desembestados de amor; nascidos, e de amor desembestados, dos charcos ferventes, salobros; charcos, alardeavam, de extintos vulcões que eles, sempre bêbados, entendiam fossem las dormidas montañas del diablo.

Audível já, falavam, às margens do rio, os prenúncios do certo verão, a irrupção das bolhas de enxofre e húmus feito tachos onde ebulisse a lama pastosa, e movediça, ou como as arrepiantes tinas-de-cobre que o aéreo professor Suarez, em seu nicho-laboratório dos fundos de casa, nunca tirava do fogo. Uma que outra vez, os quintais de Vila Pequena incendiavam.

O verão costumava amanhecer, assim, antes que amanhecesse o dia.

Era sempre ao final do inverno. Torcidas de vento, desfolhadas, as árvores da beira do rio ainda a nada alimentavam com suas sementes, que, no verão, incessantes cairiam na água, a fazer crescer os peixes pequenos. Em vão punham a boca, de peixe a boca redonda, rente à superfície do rio, para pedir, com uma insistência de minúsculos cães famintos, o sumarento mel das olívias salvajes. Negros mínimos grãos que, no janeiro fecundo, as ramas, pródigas, deitavam à água, com um miúdo estrépito de vento ou inseto à flor do Cinza remansoso.

Ninguém nunca foi ver a estroina zoada dos índios inventando que o verão já nascia, ainda que invisível, das alagadiças bordas do rio. Era então o brumoso inverno de Vila Pequena, com as chaminés das casinhas-de-madeira evolando a boa fumaça dos fogões à lenha onde aquecíamos as fatias de pão-dormido esfregadas na enregelada banha suína. Era a névoa e a constante garoa, o avô desde longe soando as botinas, o chapéu molhado, a puída capa de pano duro, entrando solene e rompante, a reperguntar à avó aonde é que estava a sua garrafada de mastruz, a cachaça curtida nos guizos da jararacambeva. De uma só talagada era que o avô tomava o mastruz, franzindo o rosto numa cara horrível, estalando a língua, o braço levantado, a mão no ar, surrando um dedo no outro alguma vez com violência.

Mas não há como a hora dentro das horas de um dia. E aquela hora foi o dia.

Guiados por um índio gordo, de nome Yupí, fomos ver o verão que, embora invisível, já fervia às margens do velho Cinza, de antúrios e de amor desembestado fervia, ao regurgito das grandes bolhas de lama e húmus. Mesmo bêbado, o índio disse que sabia aonde, e nunca que ia errar de caminho. Segundo ele, que embora muito borracho não deixava de falar coisa com coisa dentro, o verão se postava, transparência de brisa e nuvem, na sempre adiada curva do rio, a que sucede a próxima, aquela que vem depois desta outra e assim por diante até chegar ao infinito estio, ainda mais faiscante, e ainda mais definitivo, porque sempre incriado e porque sempre por acontecer e porque sempre por vir com sua orquestração de besouros e gorjeios e o ciciar das cigarras feito uma alvagaravia de trinos.

Excitava-nos o índio borracho, mas tão borracho, que ora era o mundo que pendia das árvores, ora eram as árvores que do mundo pendiam, farfalhantes, e Yupí escorava-se, gordo, de riso frouxo e cariado, a escorar-se nos quebradiços galhos da trilha, ainda assim não caía, mesmo que, partido ou envergado ao limite, o galho quisesse se despreender do mundo que oblíquo daquele jeito, não tinha jeito, todo girante oscilava e se movia. Andava o mundo a correr atrás de Yupí igual que, de asas, uma voante selvageria. Íamos também nós atrás dele, atrás de Yupí, nós e a nossa esperança cheia de dedos e agruras. Crentes na fé de que quanto mais borracho um índio, mais os segredos do verão ingerminado haveria de nos declarar, naqueles ermos; debaixo, aquele tempo, daqueles céus.

A flor da yuacanã, rubra feito uma brasa que o inverno apaga como quem apaga uma chama, foi o primeiro entrevisto do ainda inexestido verão aonde nos levava o borracho Yupí que a pisar todo aquele vacilante mundo, sua obesa carnadura, dizia e redizia que só com os olhos não iríamos enxergar como brotava, das pantanosas margens, o estio, igual que o ovo dentro de uma galinha. Era só ver, nas trilhas, nos caminhos, a brasa acesa da yuacanã para não duvidar de que nos levava, o gordo Yupí, ao certo lugar, ali onde o verão morava com sua côrte de águas, entes da nuvem e entes da neblina, branda malva, cachos e mais cachos de passarinho.

Era quase noite, nem de longe mais se avistavam as chaminés de Vila Pequena com os caracóis de fumaça de seus fogões e de suas cozinhas, quando ainda mais próximos, borrachos nós também, de tão borrachos os caminhos, começamos a ouvir o quase chilreio do murmuroso Cinza, anoitecido de estrelas e cercado de todo lado pelo coaxar da saparia. Agarrando-se a um tronco, Yupí fez com um gesto que, mesmo bêbado, indicava que escutássemos, em silêncio escutássemos, vejam só, por Tupã!, o que das águas de um rio.

E era ali que o verão, ainda não criado, já se enroscava aos caminhos.

Quietos e agachados, como ensinava o índio, foi então que paramos; o frio que nem mais frio era, só um fresco vento tocado de brisa, a nos envolver igual que uma manta tecida no bilro da noitinha maravilha, passamos a ouvir como a lama fervia, dela irrompendo os antúrios. Nada víamos, agachados na mata, só escutávamos no entrante luar que, por grande e prata, luar de inverno não era, todas as coisas as quais, mesmo borrachos, os índios nos relatavam nos declinantes invernos de Vila Pequena, feito aquelas histórias da noite em que o firmamento inteiro se fecha para que nele caibam, mais que as estrelas, todos os astros do céu e seu brilho.

E por nós passaram a passar sereias e curupiras, sabiás em fuga, rebelados canários, verdes boitatás de faiscante murmúrio, a água da fonte feito fosse dia, os ventos dos longes, quentes como o bafo de uma chaleira; e ali, de ouvir a ouvir, insistismos. E vimos que os vaga-lumes em profusão se acendiam, num lusco-fusco, num pisca-pisca, num alvoroço mais que de inseto no cio. Recostado a um tronco, a barriga a escapar da apertada camisa, o gordo Yupí, feito fosse sob uma lassa noite de verão, gozosamente dormia.

Quase deitados, na morna trilha, de areia fôfa e folhinhas, o ouvido no chão escutamos, vindo de longe, de novo uma algaravia de trinos e até hoje não sabemos se era mesmo o verão gestando suas rendas-de-estio ou tudo não passava de um sonho em que dormíamos no borrachoso sono de Yupí, bêbado de cinco dias, nossas noites sozinhas.

Do livro inédito “Racontos de Vila Pequena”

A permanência do Quixote

Nesses tempos bicudos, de desilusão e ainda maior desesperança, um antídoto possivelmente eficaz contra a hórrida “ambiência” que nos cerca, talvez seja a saga - que neste 2005 completa quatrocentos anos - de nosso muy leal cavaleiro andante Dom Quixote de la Mancha. Lutando contra moinhos de vento ou contra o vento mesmo, conforme o humor do dia, eis aí, senhores, uma (imperecível) lição de mais de quatro séculos!

Um clássico irretocável, nascido das mãos de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), é dessa ordem de livros onde o passar do tempo só os faz melhores. A exemplo dos bons vinhos, ou das nobres lições, as quais, por apostarem num humanismo de raiz, hão de permanecer para sempre eternas.

Inexiste, neste mundo de Deus, quem não saiba ao menos quem foi ou como foi o fidalgo Quixote. Confundido muitas vezes com o seu próprio autor, num hibridismo que será sempre a glória de qualquer artista, Quixote e Cervantes se misturam no imaginário popular.

Indispensável anotar, antes de mais nada, a gênese da impagável persona, sobretudo por se tratar do primeiro personagem literalmente pirado da história da literatura. Depois de ler obsessivamente todos os romances de cavalaria ao seu alcance, um gênero, aliás, mais popular na época do que as telenovelas de nossos dias, o pacato senior Alonso Quijano decide se transformar ( ou se transtornar?) ele também, por quê não?, numa espécie de heróico cavaleiro.

Mas como tudo é sonho e fantasia, e como animem o gênio de Cervantes a graça e o rigor da paródia mais desabrida, numa explícita gozação de toda a gasta literatura popularesca vigente, o seu cavaleiro andante é um cavaleiro andante destrambelhado e ensandecido. Ferina caricatura dos heróicos personagens que povoavam os devaneios dos leitores de então, Dom Quixote de la Mancha é, antes de tudo, um pícaro.

Um Jerry Lewis ou um burlesco Carlitos a andar as terras de Espanha, convence outro ainda mais pândego senhor, o gordo e troncho Sancho Pança, a lhe acompanhar, como escudeiro, na imperecível aventura de lutar contra as injustiças e as incúrias de seu tempo. Este o cerne e o âmago de um livro que aí está e aí continuará a desafiar os séculos.

Em cáustica paródia às portentosas alimárias dos heróis dos romances de cavalaria, a cavalgadura de nosso Quixote é magra e trôpega, e acaba por se inserir na história do imaginário da humanidade com o insopitável nome de Rocinante, hoje quase sinônimo de muar, cavalo, montaria. Retraduzido em quadros, esculturas, poemas, canções, quem jamais o esquecerá?

Outro dado de eternidade do gênio cervantino? A rude camponesa Aldonça Lourenço que, pela burlesca via do sonho no sonho do Quixote, se transforma na extraordinária amada Dulcinéia del Toboso. E, claro, para não errar de sonho, se afigura em heroína de singular beleza e raríssimo fulgor.

Quando a realidade é por demais inóspita, melhor inventar outra realidade. De preferência ardilosamente fantasiosa...

Do “Cahier d’écrivain”

In honore ordinis sancti benedecti

à ordem de São Bento
a ordem sabe que o fogo é lento
e está aqui fora
a ordem que vai dentro

a ordem sabe
que tudo é santo
a hora a cor a água
o canto o incenso o silêncio

e no interior do mais pequeno
abre-se profundo
a flor do espaço mais imenso

paulo leminski

Provérbio zen

A vida é muito vasta para que se apague assim como se apaga uma lâmpada. Ainda que a lâmpada se apague, fica a luz, esparsa e inelutável, fica a luz na sala.


Do “Cahier d’écrivain”

Nenhum som teme o silêncio que o extingue.

John Cage


Provérbio zen

Vê que a vida é uma grande ponte. Não constrói nela a tua casa.
Atravessa a ponte simplesmente.