quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Andrej Glusgold


9

De te perder, Amor, o medo
Se a noite me acrescenta, Amor,
Uma ruga no lado esquerdo da boca
E se me navega, tensa, ao dorso
A dança dos pombos na linha do horizonte
Um banjo, Amor, disperata viola d’amore
De te perder, Amor, pelos caminhos
Ou ao ecoar das horas no ventre da medusa,
Amor, o te perder me assusta.
E tange um tango em pânico
De Guantánamo a Siracusa
Um tempo argênteo e receoso
Do que na noite dos punhais loucos
São, noite e dia, Amor, síncope, adeus, orgasmo


Do livro inédito "35" Poemas de Amor

Cartier Bresson


Só ali me dei conta inteiramente de que Ele não me navegava mais. Onde a queda, o baque, o abismo? Aí outro de meus remorsos, vos confesso, Talhoto meu; e a vossas águas, confidencio, a estas que aqui perto de Palhoça se tornam de encardido ouro, adiante muitas léguas do Vizir, onde Ele teve, de todas as suas mulheres, a mais bonita, e, de lábio-romã, Talhoto, chamada Margô, ainda que também ela – embora por muito tempo às escondidas Dele –, tenha se revelado igualmente cigana; das mais desavergonhadas, Talhoto, uma cigana!

Eu que o diga, rio meu, na movimentação dessa caçada aqui no escuro. É metralha e ódio; sangue e ciúmes; de amor, estas histórias – atravessadas de facas, de balas. Bom Ele era, Talhoto, de coração franco e verdadeiro. Margô: bem apanhada de corpo, os seios firmes, os dentes detrás dos lábios, te juro, de tão brancos, luziam. E tinha o amendoado dos olhos – de um verde tão verde que até parecia o reflexo do Canhanha que pelo Vizir passava, de margem a margem, espessa esmeralda.

Pois só ali, relembro, me dei conta inteiramente do ocorrido e então aquele aperto, de novo a mesma pergunta-espinho – onde a queda, o baque, o abismo? Nadador, Talhoto, isto Ele era – nascido e criado à beira dos rios de todo o país do Eldorado del Paraná, um continente de flor e água, aonde as antas selvagens, às manadas, aos esbarrões e aos corcoveios, afundavam os cascos no barro dos campos; ou, em outras distâncias deste país primeiro, nas tranqueiras se enrola e se enrosca a terrível labréu, coral de fatal peçonha; sem reza, mesmo a mais braba, que dê conta da morte que ela produz – apesar de instantânea, uma morte horrível, Talhoto, nem queira saber, cheia de uivos e de gritos. O veneno da labréu, dizem , inventado pelo Demônio. Tem quem conte, aliás, por estas margens e paragens, que a labréu é dos criames dele, lá onde ele mora, Deus nos livre e guarde, no oco emaranhado dos escondidos da floresta, o Turvo.

Duas já vi – será que, Virgem Maria!, escapadas do criame do Chifrudo, perito Talhoto? –, nadando, vermelho-sangue nadando, próximo de Imbiara, ali onde o Chauá se espraia em lago, e nem mais parece rio o Chauá, tão redondo e claro, conformado entre os queimados morros do Cerro Agulha, ali eu e Ele pudemos observar, acho que um casal de labréu, Talhoto. Quem há de distinguir se macho ou fêmea? Ligeiras, ariscas, uma ao lado da outra cruzando a água e deixando atrás de si, na superfície branca do Chauá feito laguna, um rastro rubro-vermelho – dizem os índios que de sangue e mortal veneno. Remou para vante, meu Canoeiro, temeroso de que o líquido vertido por elas, ainda que em meio às águas do Chauá, rarefeito, em nosso remo, mesmo ao de leve, se misturasse. Nunca se sabe das coisas do Demo as suas ardilagens. Melhor precaver, Talhoto, que as labréus, ainda conforme os índios, só de vê-las pode que torne aziago um destino.

Não acreditei; ao menos daquela vez, não acreditamos. Desviamos apenas, a bombordo, Ele a selar a testa com um sinal-da-cruz e a beijar a santinha que de tão pequena se perdia, pendurada da corrente, no peito que Ele tinha – tinha ou tem, Talhoto? –, por entre o negro alvoroçado de pêlos, cabeludo. Ele, meu Canoeiro, que hei de encontrar, um dia, nem que seja o seu nome soando nos penedos que de granito gelam o Cravéu, antes de Santa Ifigênia, o rio apertado a escorrer entre os paredões, verdoengo, misterioso, no sudoeste que ali muge e estertora, soando em eco o nome Dele.

Só Ele, Talhoto, a me fazer, outra vez, Canoa.

Fragmento do livro inédito "Canoa Canoa"

Kevin Bubriski


Chuvas

Bicho líquido de fiel transparência, as chuvas chovem no zinco de nosso teto humilde com a graça quase invisível de ariscas lagartas, e mínimas, muitas, coleantes, uma que vez cândidas.

Quis no verão sua morada, e o ímpeto com que serpenteia da nuvem ao telhado e dali às caleiras da casa, ninho suspenso entre o arrozal e as águas.

Há, contudo, diversas espécies de chuva --- de chuviscagens a chuvões, veros maremotos, bebendo a Terra, rios e lagos, riachos e cascatas.

Se me sugas feito um vício eu sou a chuva que teu chão lambe com uma volúpia de amantes entranhados - um no outro encharcados até a última gota e a derradeira raiz mais chã.

Lavas-me o rosto a esguichos; brinco de intempérie sobre o vosso ventre. Líquidos e miasmas, cobrem meu corpo vossas mágoas. Águas? Cantam as calhas nosso lamento, longe, enxurrada em lá maior, aguaceiro, coral de anilhas.
Provérbio zen

"Mil vezes por minuto bate o coração de um beija-flor".

Revista "Nature"

Escutar Caetano Veloso cantando "Terra"
http://www.youtube.com/watch?v=9YgDmt1FoT0

Botero


Harold Harvey, 1937


Cahier d'écrivain

"Onde não há jardim as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis".

Carlos Drummond de Andrade
Provérbio zen

"O sono do peixe é um descuido da água".

Guimarães Rosa

George Seeley, 1910


Py

Na ilhota de Py um pirata permanece desde a criação das ilhas, dos oceanos e dos piratas, perfeitamente em pé, perfeitamente perneta e perfeitamente grato ao rochoso vértice que brota do mar, o qual além de lhe prestar socorro em noite tormentosa, serve de modo justo e sem erro, nem mais para a esquerda nem mais para a direita, ao seu único pé, cujos dedos abrem-se numa ferida de sal.


Saudades da muleta, dizem que sente, embora tivesse o hábito de, sem ela, permanecer em pé, sendo, muitas vezes, em razão desta pantomima, incensado pelos salões. Abandonava as muletas e equilibrava-se num desconcerto que causava mais o riso do que a lágrima, num só pé e numa só perna, o perneta triunfal.

Na ilha de Py nosso pirata chegava a ficar três dias e três noites, apoiado apenas no pé que dispensava a muleta, até ser resgatado por errantes marinheiros.

Senhor de estoicismo proverbial, não abandonava nunca o posto. Primeiro, por temer que o lugar lhe fosse roubado; e, segundo, porque dali, munido da mais potente luneta, vigiava o mar tormentoso à espera de quem o resgatasse um dia.

E lá, segredam, continua até hoje, ilhéu de seu próprio corpo, certo de que, mais cedo ou mais tarde, algo ou alguém o salve de si mesmo.

Do livro inédito "Ilhas"
Cahier d'écrivain

"Delicado é aquele para quem a pátria é doce. Bravo, aquele para quem a pátria é tudo. Mas perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é exílio..."

Hugo de San Vítor

Casa do poeta


Casa do poeta
flores, as rosas champanhe
--- madura alegria

a sala dentro da casa
a casa dentro da sala