segunda-feira, 31 de março de 2008


Klavdij Sluban

terça-feira, 18 de março de 2008


Wilson Bueno by Paola de Orte
Wilson Bueno lê fragmento
de Mar Paraguayo,
durante Festival Tordesilhas,
outubro, São Paulo, 2007.

Filmado por Elizabeth Neira.

http://www.youtube.com/watch?v=zy7DgCfZZAs

domingo, 16 de março de 2008



Absurda, do czar do bizarro David Lynch
Ver Absurda,
de David Lynch

http://br.youtube.com/watch?v=P9Q7ZKH7G4A&feature=related

Miran

Matisse

Dick Swift
De sonho e reza-braba

Pesquisas recentes indicaram os sonhos como eficazes antídotos contra o estresse nosso de cada dia. Não sei em que medida isto ocorra. Estresse não me parece coisa que se cure com sonhos. Temos visto, no áspero cotidiano, que, não sendo da aérea matéria deles, o estresse é bem mais um pesadelo da vigília e de sua fatigada astúcia.

Não me canso de lembrar aqui minhas origens e, com elas, o resgate da infância primordial onde a vida mesma era sonho e punha todas as coisas encantadas. Minha avó cabocla, por exemplo, Maria Rosa Custódia de Senes, esta tinha a ciência dos sonhos na ponta da língua. Feito um talismã.

Sonhar com alguém chorando, não hesitava vaticinar: vinha ali dinheiro ou alguma mulher da família estava prestes a parir. Já sonhar com viagens tinha uma nota aziaga --- morte certa de compadres ou amigos. Sonhar com um passarinho, era casamento; sonhar com muitos passarinhos (ouviu, Rogério Dias?), anunciava grandes colheitas.

O rol de significados e significâncias, a partir do sonho, era, para a avó, quase inesgotável. Sonhar com chuva, o prolongamento do estio na roça seca; sonhar com alguém voando ou caindo do cavalo, não dava outra --- chegariam parentes há muito ausentes.

Também o saber, digamos, erudito, nos reserva coisas prodigiosas sobre os sonhos. Veja o leitor, esta, dos aedos gregos, bem mais interessante que as recentes descobertas da ciência moderna: a prova, entre outras, de que o Inferno existe --- incontestável nos demoníacos pesadelos vividos pela alma quando em sono profundo.

Por falar em alma, impossível esquecer o famoso soporífero da planta mandrágora, que, entre os caldeus, causava sono idêntico ao da morte...

Tão ou mais sábia, repito, era a velha Maria Custódia, rezadeira, benzedeira, “costurava” carne rasgada, além de capaz das mais incríveis simpatias para evitar “mau-olhado” que, aquele tempo, tinha outro nome --- “quebranto”. Sobretudo criança que não fosse protegida, adoecia gravemente.

Mas pior que mau-olhado, só picada de cobra e, contra ela, a avó tinha um antídoto feroz: “reza-braba”. Verdadeiros mantras caboclos que, incompreensíveis ao comum dos mortais, apenas ela sabia rezar, secretos na mente, secretamente aprendidos de cor.

Dona Maria Rosa Custódia de Senes faleceu em 1967, varada em anos, e descansa, ao lado de minha mãe, no Cemitério de Santa Cândida. Convivi em sua (doce) companhia a primeira década e meia de minha pobre existência e nunca a ouvi falar em estresse ou que sonho curasse estresse. E olha que de sonho e “reza-braba” ela entendia; e não entendia pouco.


Crônica originalmente publicada no jornal O Estado do Paraná, 16 de março de 2008

A copista de Kafka: Felice Bauer
Faço minhas as palavras de Boris Schnaiderman na orelha de A copista de Kafka: é um texto envolvente. Digo mais: fluente. Uma das virtudes que mais valorizo numa obra literária é a capacidade de liquidez do texto junto ao leitor, seu objetivo principal. Para oferecer prazer à leitura um texto deve ser capaz de penetrar – sem atrito – pelos nossos vasos comunicantes. Não se pense por isso tratar-se de um texto fácil. Não é essa a questão – pois até mesmo em Grande Sertão percebe-se esta característica (quase sempre associada ao ritmo).

Romancista experiente, Bueno faz uso de um jargão literário capaz de confirmar sua destreza com a palavra, ao levar a sério a máxima de que as dez primeiras linhas de um livro são fundamentais para se fisgar um leitor.

Vejam isso:

Conheci ontem o simpático senhor Franz. Olhou-me demoradamente os pés. Terá notado o defeito que tão insistentemente escondo e dele só dou registro nas páginas deste diário exausto? São grandes, julgo muito grandes os meus pés. Também não aprecio o meu nariz. Acompanha-me o rosto, como me acompanha a boca rasgada e as sobrancelhas proeminentes, mas não aprecio o meu nariz. Pareceu-me um homem encantador, o senhor Franz a noite passada, no apartamento de Brod. Gentil e magro, um perfeito cavalheiro. Guardei dele, com uma intensidade assustada, os olhos – muito negros e, às vezes um pouco alheados. Acho que nasceu ali uma amizade para toda a vida.

Trocando de narrador a cada capítulo, Bueno cria um estranho universo de sensibilidades numa seqüência de histórias espetaculares feitas do cotidiano mais surreal: o gato de cinco patas, o raivoso enjaulado na urna de vidro – e cá estamos de volta ao diário da copista de Franz Kafka. Livro-surpresa, este representa, sem dúvida, um upgrade na obra já consumada do escritor da Vila Tingüi. Assim é também na opinião do caderno especializado Prosa & Verso d´O Globo, que há duas semanas teceu elogios pesados ao livro.

O dream time paranaense – com Tezza, Valêncio Xavier, Pelegrini, Miguel Sanches e Wilson Bueno já merece uma coletânea. Estou esquecendo alguém?

Toninho Vaz, de Santa Teresa

George Seeley, 1910
volta

chove a chuva fina
lua névoa na neblina
chegamos a Ikedo

a casa de nossos pais
céu brincando de brinquedo

sábado, 15 de março de 2008


Capa de A copista de Kafka, do escritor Wilson Bueno, que no próximo dia 5 de maio receberá no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, o Prêmio APCA de melhor livro de contos publicado no país em 2007.

quarta-feira, 5 de março de 2008


Joel-Peter Witkin
Água d'água

Sou quase uma mulher, mas tenho a forma, dizem, de uma lagarta e vomito todos os dias pela janela. Um vômito agônico, terminal, e, o mais surpreendente, limpo, de uma limpeza a nenúfar e pedra-pome. Sou possivelmente uma forma breve de mulher --- nem alta nem pequena, o rosto é que suspende no vácuo um olhar fatal, leve fragrância a lavanda, o longínquo rosa da água de rosas.

Hommage a Andy Wahrol


Andy Wahrol (1928/1987)
Provérbio Zen

Não repare na nota fúnebre que corre por esta carta; é música do crepúsculo e da solidão.

Machado de Assis
Cahier d'écrivain

O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma tarde no campo, pode ser música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que apregoam o desprezo pelo ouro; é um Proteu mais versátil que o da ilha Faros.

Jorge Luis Borges

Hokusai (1760/1849)
Gustave Doré (1832/1883)

Hommage a Dom Hélder Câmara


Andrej Glusgold
calendário

as mãos de meu pai
nelas as veias de ontem
já falam dos anos

hoje era amanhã tão longe
sapatos de um velho monge
Heinrich Kühn, 1900
Silas

Quando desembarcamos em Silas, no gelado Atlântico Sul, sabemos agora pelos registros de bordo, corria o ano da graça de 1546. E foi um raro acontecimento descobrir esta ilha de rocha basáltica e gelo e neve, povoada, às dezenas de milhares, por inenarráveis pingüins albinos.

Tão alvos, confundiam-se, os pingüins, ruidosos, à paisagem desesperadamente branca, que, ao sabor das ventanias, indicava ainda uma paisagem em contínuo movimento. Como se toda Silas andasse feito andam as areias do deserto nem que uma superfície móvel e delicada.

Muito poucos fomos os navegadores de Hérida que, vencido o ímpeto de desafiar Silas, e possivelmente o de sobrevivê-la, retornamos às embarcações fundeadas ao largo da ilha, remando, extenuados, frágeis batéis. E a vencer, com eles, as altas ondas e o grosso mar que se lança contra rochas de açúcar e gelo, a alvoroçar os pingüins sob a ofuscante claridade que fazia, às vezes, de Silas, uma espécie assim de massa luminosa – mais fria que o vento a eriçar a neve eterna que, asseguravam os marinheiros, nascera com ela, com Silas, desde o começo, desde a primeira vez.

Muito antes de nós, não foram poucos os navegantes que pereceram à neblina de sua alvura, enredados pelo frio e pelas pesadas nevascas que a tudo sepultavam, em Silas, tornando-a alguma vez a miragem de perigoso iceberg a derivar no atlântico azul. Silas, entanto, prosseguia fixa, como fixas são todas as ilhas e não sabemos até hoje de nenhuma que pelo mar deslize como deslizam nele as caravelas, os afogados ou as montanhas de gelo. Embora existam cartas marinhas dando como certas as ilhas nômades do Cáspio e do Báltico. O que, claro, soa um grosseiro disparate.

O fantástico em Silas existe, sim, e é toda a razão desta crônica ilhéu, trêmula de frio: Silas conserva em seu solo, feito de incontáveis camadas de neve e gelo – as que existem agora e também as que existiram um dia e que ao calor dos séculos foram se dissolvendo – conserva os seus mortos, todos os seus mortos, assustadoramente não corrompidos face às baixíssimas temperaturas, numa vertiginosa integridade de vivos.

Em nossas explorações descobrimos, surpresos, entre outros assombros, espalhados pela ilha, aqui um mercador egípcio, impossível de datar senão pelo barrete e os finíssimos bigodes; ali, o que nos pareceu o curioso e preciso cadáver de um rei aventureiro; mais adiante, as curvas imutáveis do corpo de uma mulher; ou, completa, uma cena, cuja beleza de gelo a expedição inteira celebrou com imprevisto fervor: a glabra nudez de um efebo negro, de encaracolados cabelos, intimamente acolhido ao rijo tórax de um veterano soldado de Tebas, os olhos de ácido azul.

Para além do Tempo, o íntegro gesto de amor – inteiros como estátuas de pedra, os olhos deles, abertos, se entreolham, bem próximos, sem piscar nunca, ungidos por obsessivo enlevo, como se nada houvesse acontecido, desde então, sobre a Terra.
Distante dali, em outro tempo e lugar, para além dos pingüins albinos, só a música longínqua, de um baile talvez, pelo que soa e torna a silenciar, na branca amplidão, uma orquestra de violinos.

Quem viu Silas assim, renascida da neve, garante que nunca mais foi o mesmo.


Texto inédito do livro "Ilhas".

Paul Klee

Andraos & Tabet
13


Tudo o que foi já sendo
Na extremidade dos dias,
Amor encheu-se de medo
Ante as vilanias do uso
E as abruptas quedas no abismo.
Amor, de vestido-de-noiva
Pôs buquê, guirlanda, aliança
E passou a viver junto,
Amores feitos dois pombos.
Sem atentar para as síncopes entanto
Do brusco e do grito ao osso da manhã muda,
Restolhos de amor, um susto,
Nas dobras de cada dia.
E então gasto aos soluços
Amor foi morrer de bruços
Su dulce esplendorosa gastura.
Do Amor, agora, só um silêncio.
Georgia O'Keeffe

Caramujos

Que de sons ecoa o tímpano do caracol ? Enrodilhado em sua louça multicor acaso o ausente sexo freme ? Um que de porcelana fosse dificilmente sobreviveria em sua fragilidade exaltada, e complexíssima.

Andam na noite, inenarráveis dromedários ou uma absurda espécie de formiga - levando às costas sua montanha de osso e marfim.

Onanistas, narcisos, centrados em sua têmpera, os caramujos, às frescas manhãs de areia e espuma, da longa praia deserta, são uma aleluia viva, e numerosa.

Prescindir da rubra curva de vossa nádega e ainda assim, encaracolado aos vossos crespos e pentelhos, imaginar com os ruflos de um colibri-de-asas, ramblas, ramonas, ai que te incenso a coxa grávida com meu filete d’água cinza-pálida.


Nelson Cavaquinho (1911/1986)
As Mil e Uma Mortes de Nelson Cavaquinho

Ele tinha sobretudo majestade. Não importava se num boteco xexelento do velho centro do Rio ou entre a vip-intelligentsia dos bares de Ipanema. Segurava um violão de forma desconcertante – atravessado ao peito, quase na vertical, feito um martírio ou um drama. E cantava a morte com a imponência solene de quem profundamente se sabe mortal.

Nossas vidas esbarraram-se com freqüência nas madrugadas aturdidas, entre hippies, travestis, proxenetas, gigolôs, michês, prostitutas, a ratatuia que povoa os botequins humilhados, bebe o que não tem, e grita, e briga, e surrupia tudo o que tem direito. Mesmo ali, altar da transgressão, era como se estivesse em palácio a sua cena, feita de cerveja, violão e o anúncio – claro – de que o tempo é um animal odioso.

Assim, tocou a transcendência como nenhum outro poeta popular do meu país – as mãos curiosas de sua verdade terminal; e ousou perseguir, até o fim, as noites caducas, as noites mixas, a solidão do vasto geral reino da gonorréia, da sífilis e do cancro-mole – maltratado continente de bêbados, malucos e doidos-varridos.

Não há o que chorar. A sua existência se cumpriu (ou foi consumida?) no azarado destino que o pôs num país que decreta aos gênios populares apenas o direito ao “folclore” – como se este fosse a glória máxima de uma biografia toda ela devotada à poesia. Não há o que chorar, se nascer aqui sempre foi triste, desolador e arbitrário.

Olho lá: numa sacola das Casas Sendas, Madame Satã vendia o seu livro de memórias, e acabava liquidando sumariamente a esmola amealhada, num porre que o colocava literalmente a nocaute sobre a mesa e o chope; Ismael Silva, o compositor incomparável, se escondia num apartamento decadente da Gomes Freire, e Nelson Cavaquinho, na via-crucis dos bares, sempre teve a birita financiada por otários, tietes e admiradores. Olhar lá é pior.

O fato é que nesta noite e neste subúrbio, a voz rouca, devastada pelo álcool, pelos anos e pelo cigarro, vem desde o fundo do fundo do poço, como um presságio, como uma nota dissonante, e canta em verso sublime a nossa existência provisória, esse delicado horror que preferimos esquecer – como uma verdade incômoda trancada dentro de uma gaveta. E vem com ela uma outra espécie de morte – esta que os vivos provam a cada morte que entre a gente acontece.


Texto publicado originalmente em Bolero's Bar (Travessa dos Editores, 2007).

Anon, 1890
Assistir a morrer um homem

Ontem, ao final da manhã, assisti morrer a um homem.

Vinha a braços com o Goes numa conversação animada que se demorou na esquina de Imperatriz com a rua Direita, excitados ambos com a história dos Césares e a da Roma antiga, duas das manias que em comum cultivamos, quando nos despedimos. Ao Goes não lhe apetece deixar assunto inconcluso e, lembra-me bem, ainda voltou-se, mais de uma vez, para acrescentar um detalhe quase desprezível à vida de Caius Julius e outra creio para reformar uma minha afirmação sobre o Imperador Constantino.

Já o disse aqui, muita vez, e digo-o de novo – o Goes é tido por muitos como lunático. Falou-se sempre em nevrose que, por insuspeitos caminhos, teria se aliado a profunda neurastenia, mas outros tergiversam e dizem que a neurastenia começou primeiro e que a nevrose veio depois. Eu que nada entendo de alienados, e muito menos da cerrada teoria dos alienistas de nosso tempo, profusos e debatedores, tenho para mim que o Goes é como todos – às vezes alegre, às vezes triste. O diabo é que quando ao Goes é dada uma alegria, por menor que seja, já entorna um tonel e cai em esbórnia inconfessável; e se triste, o Goes, entre matar-se ou não, feito os poetas românticos, ou tardo-românticos, some da vista e, comentam, afunda em nova carraspana, choroso e pedinte, longe dos amigos e da platônica amada, a Valquíria, pelos clandestinos da Gamboa. É o que dizem e espalham os invejosos do Goes.

Uma que outra vez, aceito, desanda os trilhos mas daí a impingir a ele uma demência que não tem, é excesso, e, repito, inveja, morba inveja. Isto mesmo – inveja de seu brilho e, alguma vez, censura, por suas posições veementes. O Goes, por exemplo, é monarquista, ainda que não revele isto abertamente, e nem precise – cochicham pelos cantos, abafam – “Monarquista; o Goes é monarquista; e alienado...”

Foi tudo muito repentino e de sopetão: a dous passos de mim, o homem desabou, no que, em princípio, pensei tratar-se de um ataque epiléptico – o homem, um vendedor de vassouras, estrebuchou-se ao passeio, convulso, trêmulo, de grandes olhos esbugalhados. Como crispasse as mãos e vertesse pelo canto da boca uma espécie de baba, eu e as demais pessoas que logo acudiram ao redor, não interferimos, como deve ser o procedimento normal, e bastante razoável, nessas ocorrências.

Lamentei não ter mais o Goes ao lado. Poria ao peito do homem a sua cabeça nervosa e o auscultaria de ouvido, os olhos fechados, os olhos profundamente fechados, sem esquecer do cavanhaque que lhe confere, nestes momentos solenes, um ar superior, quase mefistofélico. Melhor seria o diagnóstico: “Angina pectoris, meu caro Leocádio. Angina pectoris.” E, tenho certeza, poria tamanha reverência no latim escovado, que teria todo o rosto – e o pontudo cavanhaque – toldado por uma sombra assim meio definitiva, conclusa; e fatal. O pequeno ajuntamento, outra de minhas certezas, se desfaria, e alguém, do meio da malta, coração solidário, se prontificaria a chamar o padre, o morgue, a polícia montada.

Mas não foi assim como rabisco cá nestes papéis velhos: tudo, claro, passou-se em segundos e não com o tamanho que me ficou o parágrafo acima, e logo vimos que de trêmulo o homem foi tomando uma cor entre o roxo e o violáceo. Houve quem dissesse, abafado, não querendo crer na própria certeza, que era a febre tifóide. Assunto meio tabu, as autoridades sanitárias parece escondiam um surto, ainda que controlado, do mal – sobretudo nas cercanias de Parati e, me parece, também em Itaúna. O comentário foi como um rastilho de pólvora: o tifo havia chegado enfim ao Rio de Janeiro. Gelamos.

Observei bem justo – a roda em torno do vendedor de vassouras abriu-se ainda mais pois ninguém descuidava de que em se tratando “dela” , todo cuidado era nenhum, e pode que viajassem no vento os ovos sinistros da morte abjecta. Eu mesmo me surpreendi tornando dous passos atrás.

Ver morrer a um homem não é cousa fácil, e ver aquele ali, modesto vendedor de vassouras, a morrer de tifo, parecia ainda menos suportável: havia a agonia nos olhos dele – abertos e muito intensos – que insistiam olhar, num esforço inútil, para além do chão.

Nisto alguém bateu-me ao ombro: capa e cartola sugeria um dândi saído de algum conto francês, a figura que eu via, bem atrás de mim, buscando ultrapassar a roda em torno do morituro: o Lafaiete, meu Deus, o Lafaiete!

--- Não creio, é o Leocádio? É o Leocádio José, nosso causídico? – foi logo se expandindo, como era de seu feitio.

---Também não creio... – fiz mossa. – Também não creio, é o Lafaiete,
é ?...

Abraçamo-nos num afeto sem conta, e até, convenhamos, meio impróprio para as circustâncias. Ao lado de nossa saudação espalhafatosa, um homem, necessário não esquecer, morria, àquelas horas, a sua morte, transformada em cena pública, com direito a audiência e, mais um pouco, ao estrepitoso festim do aplauso, essa iguaria, que está em Plotino, e era o modo como os antigos invocavam os deuses.

Antes que o Lafaiete soltasse-me de seu abraço dele, ambos quedamo-nos mudos, os dous: o vendedor de vassouras mexia lento, mas mexia, uma das mãos, e a perna direita tentava dobrar o joelho, como se reunindo impulso para levantar-se da calçada.

Foi um oh uníssono e aterrado de todos à volta do homem que, sem delongas, ainda que zonzo e muito tonto, aprumou-se de inopino, olhando em torno com uma estranheza que jamais esquecerei agora nem nunca nesta minha vida que, devo dizer, já vai longe. A seguir, cambaleante, insistiu, com forte sotaque luso, onde andavam as vassoiras, as vassoiras. A malta, não é surpresa, enfureceu-se, quase a comunicar ao homem que morresse, que ao cuspido chão do centro da cidade do Rio de Janeiro, tornasse morrer a sua morte suja e pobre e gasta e carcomida. Rareavam já nas ruas os vassoureiros, como os chamávamos, a entoar bordões lusos, desde longe, o molhe de vassouras encarapitado ao ombro protegido por uma toalha dobrada, “olha as vassoirinhas”, “olha as vassoiras”, “venham a ver, vassoiras novas e firmes”, “olha as vassoiras”... O Lafaiete não se conteve, ríspido, gerente de casa financeira, autoritário:

--- Se vais ao gole, malandrim, ide acompanhado do diabo!

O homem apertou os olhos bêbedos – sabe-se lá de que venenos – a fronte esquerda roxa e meio inchada, e num esforço que a todos nos pareceu ir às últimas consequências, entreabriu o beiço esfolado e antes que inteiro completasse, de novo, a palavra “vassoira”, estatelou à calçada – um baque surdo, desconjuntado.

O Lafaiete foi às ganas com empáfia dona das gentes e da vida:

--- Tifo sãos os fernetes, a catuaba d’aguardente, os cognacs... O resto, Leocádio, é a sempre bebedeira do populacho que emporcalha a capital da República – disse, virando-se para mim, o ar superior e indiferente, como se a nova queda do homem fosse só uma encenação, uma fraqueza evitável, cousas dessa natureza e perfume, feito dizia nosso colega de fórum, o saudoso dr. Lucas Monteiro Ferraz, o advogado das causas perdidas...

Antes que eu concordasse com ele, porque com o Lafaiete ou se concorda inteiramente ou se fica inteiramente de mal, o vassoureiro gemeu um vagido tão das entranhas, mas tão fundo e tão abissal que, não exagero, leitor que me deslê as linhas tortas, era como se a vida sufocada não suportasse, ao vassoureiro, o corpo combalido.

Para o Lafaiete foi a gota, a palha que transtorna o celeiro – tomando o gemido como um insulto, e peor, dirigido diretamente a ele, um cidadão de bem com o fisco e com a finança, além de virtuoso e sem vício, estava a merecer, via-se, uma resposta. Roubando-me, ato contínuo, a bengala que, sabeis, não largo nunca, sobremodo nestas alturas (alturas?) declinantes e melancólicas, numa velocidade de esgrima avançou contra o homem estendido ao chão, procurando-lhe a cabeça. O Lafaiete parecia destinado, aquele dia, a matar. E só não alcançou o intento porque, pasmem!, parou a meio caminho com as bengaladas, o homem estava verazmente morto, mais que morto, mortíssimo, como comprovou um piedoso boticário estabelecido logo na esquina e que, apesar de atrasado, veio em socorro do vassoureiro e pôde lhe medir o pulso e lhe verificar o fôlego a um espelho.

--- Vá lá saber... Vá lá saber... – e era só o que rosnava o Lafaiete, fingindo uma desconfiança que evidentemente não tinha, batendo-me de leve nos ombros, despedindo-se com um gesto de que nos garantia novo encontro, e saindo à sorrelfa, a cabeça várias vezes a sacudia de um lado para outro, negando o boticário, o vassoureiro e, de certo, negando a morte.

Veio uma chuva e o pequeno ajuntamento em volta do vassoureiro desfez-se como num passe de mágica. Eu mesmo, logo me vi, sob a sacada de um prédio, o jornal protegendo-me da água, repentinamente torrencial, e do vento. Dali, a alguns metros do morto, espreitei, aterrado: grossa, tempestuosa, a chuva era tanta e tamanha que empapava o algodão barato de que lhe eram feitas a calça e a camisa e houve um momento que, de transparente, o morto parece ficou nu, nítido o contorno do sexo e quase toda a barriga abaixo do umbigo, onde um cordão, agora desatado, fizera as vezes de cinto. Mas nem isso, as suas vergonhas públicas, a chuva, o vento e mesmo a manhã finda levavam em conta, desatando a chover ainda mais o mesmo aguaceiro que punha o mundo abaixo num dilúvio medonho. Peor que isso, mais pornográfico, para usar uma palavra da moda, foi ver que o morto, só, sob a chuva torrencial, numa morte de meter medo, concluí morria profundamente – acho que de corpo e de alma.


Fragmento do romance "Amar-te a Ti Nem Sei se com Carícias" (Editora Planeta, 2004) lido na Tenda dos Autores durante a FLIP 2006 (Festa Literária Internacional de Paraty).

Miran

Escutar Louis Armstrong
cantando Ain’t Misbehavin’

http://app.radio.musica.uol.com.br/radiouol/player/frameset.php?nomeplaylist=233&opcao=playlist

Ver Kimiko Yoshida

http://www.kimiko.fr/

Édouard Boubat

Prosa & Verso, O Globo, sábado, 1 de março de 2008
Ler matéria sobre
A copista de Kafka
no jornal O Globo

http://www.leitor.com.br/adm/ver_link_planeta.asp?veiculo=O%20Globo%20-%20Rio%20de%20Janeiro/RJ&data=1/3/2008&edi=Prosa%20e%20Verso&pag=04&qtd=1&class=781&img=..//clientes/planeta/v08030398a.jpg

domingo, 2 de março de 2008

Acabei de ler a resenha que a jornalista Rozine Aline, professora da UniCarioca, escreveu sobre A copista de Kafka (Editora Planeta), livro de Wilson Bueno que acaba de chegar às livrarias. Está publicada no caderno Prosa e Verso, na edição deste sábado, n'O Globo. O mínimo que a articulista diz é que "a narrativa de Bueno ilumina de forma envolvente a rotina que move o ser humano".

De elogios em elogios, a análise não deixa dúvida de que se trata de um grande lançamento literário na área da ficção: "A escrita elegante e cadente dá ritmo, sons, cores e odores que ultrapassam a página de papel e se inscrevem em nossa pele sorrateiramente". Se tivesse a mesma cotação dos filmes, no setor de cinema, o tradicional bonequinho estaria aplaudindo em pé.

Toninho Vaz, de Santa Teresa

Ver o flagrante
do ataque de um tigre

http://www.youtube.com/watch?v=1LjG7S8aqJg&feature=related
Hilda Hilst
Desvendar o site de Hilda Hilst

http://www.angelfire.com/ri/casadosol/hhilst.html
Greta Garbo
Ver Greta Garbo
em cenas raríssimas


http://www.youtube.com/watch?v=6q0P07Su4H0&feature=related

Alexandre Órion

Tsuneyo Toyonaga
Morreu, na semana, aos 113 anos, Tsuneyo Toyonaga, a mulher mais velha do Japão. A boa e vetusta nipônica, como era de se esperar em bem-aventuranças dessa ordem, nunca sofreu de nada e morreu, também como era de se esperar nesses casos, de falência múltipla dos órgãos, isto é, dormindo...

Impávida colosso, entretanto, a mulher mais velha do mundo, comprovado em cartório, continua sendo a muito nossa Silvina Rosa de Jesus. Nascida a 20 de junho de 1888, em Jacaraci, Bahia, vai fazer 120 anos (se fizer, claro...), quando o inverno chegar. E, sabemos, o inverno, logo, logo, há de bater à nossa porta. Em Curitiba, sabemos melhor, sempre antes do que a gente imagina... Pois D. Silvina, quem quiser lhe ver o rosto alegríssimo, escancarado numa gargalhada sem dentadura, sagrado despudor e doce descalabro, é só acessar o blog do poeta Fernando Karl (www.nautikkon.blogspot.com). Lá está D. Silvina, a ditar, alto e bom som (ouviu, Dante Mendonça?) o segredo de sua longevidade: cachaça, namoro e fumo de rolo. Pode?

Próximo ao túmulo do poeta-irmão, Paulo Leminski, no cemitério do Água Verde, morto infante, aos 44 anos, repousam, senhores, os restos mortais de minha avó paterna, Mariana Fonseca Bueno, falecida, pasmem!, aos 105 anos, em 1946. Até os cem, reza a crônica familiar, trançava rendas-de-bilro, os oclinhos de garrafa sobre o nariz aquilino.

Vejo-a aqui, no retrato antigo: severa e moça, o suave buço, ao lado do filho caçula, meu avô Emídio, então um lépido rapaz, mais sério que a mãe na foto de 1923. Ô vida! Ô Tempo que anda e anda, congelando, lá atrás, pássaro e vento, olhos e sorrisos.

O avô só não foi aos cem porque, pedestre renitente, uma kombi na contra-mão o matou aos 74 . Mas acabara de construir, sozinho, no Uberaba, uma casa de doze peças. Vera força da natureza!

Pelo visto, vão ter que me aturar por mais bom tempo, a chamar a atenção para céus e telhados, pinheiros e precipícios. Quase sexagenário, a passear visíveis 37 (hehehe), sem a notória porralouquice que foi a maior marca de meus trint’anos em Curitiba (né mesmo, Almir Feijó?), pode que incomode por mais meio século. Ai das hienas papudas ou dos críticos tortuosos, senhores das histórias e das “desestórias” das desinteligências!

Gosto mesmo é do Oscar Niemeyer, 100, a dizer sonoros palavrões quando algo vai mal no escritório e das pernas da Derci Gonçalves, 103, nas entrevistas ao Jô Soares.

E por falar em cousas lindas, muito mais que findas, cadê o sempre álbum de família de Iara Teixeira, no blog do Solda? Deliciavam-me aquelas gentes, em sépia, à volta do pai do Nireu Teixeira, a agitarem os palcos dos “theatros” curitibanos d’antanho.

Noites de espetáculo que, feéricas, existiram um dia, embora a distância, e a melodia da distância no tempo, feito uma brisa nas dobras da História. Que o digam D. Silvina, 119, suas cachaças, seus namoros, seus fumos-de-rolo.


Wilson Bueno (02/03/2008), em O Estado do Paraná