sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Cartier Bresson


Sombrus

Perde-se na noite dos tempos a memória do primeiro navegador que desembarcou na ilha de Sombrus. Não se sabe quando isto se deu nem a nossa humanidade foi capaz de buscar mesmo a data aproximada da arriscada façanha.

É que em Sombrus vivem e latem, noite e dia, os cães selvagens do Arquipélago, que ali fizeram morada não se sabe igualmente como e muito menos por meio de quem. Aliás, pouco se sabe da história primeira de Sombrus, suja, sem dúvida, de lendas sinistras e ainda mais sinistros eventos de sangue e mar, sal e insistência.

Não convém, de nenhum modo, entretanto, ficar aqui lembrando a história pregressa de uma ilha que emergiu das águas do Pacífico feito uma flor monstruosa e triste. O que vale anotar é o presente. Este se dá, em Sombrus, de forma sumamente enigmática – as horas passam não em direção ao futuro, mas num lentíssimo escoar-se passado e saudade afora. Herança, odores, perfumes – esvaídos nas dobras dos dias, puro reverso, notícias longínquas, ecos de tardes soterradas pelo Tempo.

Em Sombrus, primeiro vêm as noites e depois delas o entardecer e, na sequência, a própria tarde, a manhã, o alvorecer, a madrugada inteira, para só então sobrevir de novo a noite antes da meia-noite, a lua e as estrelas.

É sempre assim. Conosco também retornam as faces que a mó dos anos puiu e gastou, e, tudo o que era sulcos e rugas reverte, o que é ainda mais inquietante, até uma temida infância que ameaça as gentes com o retorno ao útero e do útero ao aéreo nada de que fomos feitos um dia. A morte de não haver?

Contudo, os cães de Sombrus são os únicos seres que alcançam vencer a marcha à ré do Tempo. Nascem, crescem, procriam e morrem – os alvos ossos nas praias desertas, cada vez mais desertas.

Ninguém até hoje conseguiu explicar porque de toda ilha são os únicos seres vivos capazes do que chamamos, em Sombrus, ou fora dela, escassamente, de futuro.

Então é que se dá de Sombrus o inenarrável encanto – os cães, diz a lenda, são os testemunhos fiéis de que, mesmo ao contrário, os anos andam e andam, consumindo seres e coisas, vegetais e pedras.

Por isso, aturdidos, os cães latem, tarde da noite, e vão aos bandos pelas praias da ilha, como se sentissem a dor do Tempo atravessada na garganta.

Isso um dia vimos e ouvimos, nós, os navegadores de Hérida, há muitos e muitos séculos. Desconhecemos apenas se, pelos indizíveis meses que passamos ao mar, e o nenhum calendário, eles, os séculos, se encontravam ou não ao revés.



Do livro inédito “Ilhas”

Édouard Boubat


Néctar


Noite fechada quando avistamos, os navegadores de Hérida, a intensa luz que a nós chegou, como de indiscerníveis archotes, da ilha imóvel sobre o quente e salobro mar ao sul da baía de Santa Assunción; e era assim, pintada de amarelo, a ilha de Néctar – cantada em prosa e verso por nautas, poetas e loucos, desde antes das embarcações, das longas rotas marítimas e das descobertas.

Néctar, ilha por todos sonhada, nunca ninguém provou dela, contudo, o mel. Encanto soterrado no que passou, feitiço de ilha sempre por existir – desde o começo do começo do começo.

Em Néctar, a vigília pronta ao bote, nunca permitiu que conhecessem, da ilha, florestas e montanhas, rios tocados pelo açúcar mais claro, pedras a verter olor e espuma. Mas a vigília, impiedosa, sempre tentou, e alguma vez sempre conseguiu, impedir que o sonho de Néctar se transformasse em realidade.

Isto até o dia em que, descuidada, a vigília adormeceu e sonhou com uma ilha quase bíblica onde doçura e calma, encanto e lucidez, formavam nela como se bosques desabados de flores.

E só então os habitantes de Néctar, imersos no sonho de estar sonhando Néctar em plena baía de Santa Assunción, martirizavam, ainda outra vez, a exemplo do poema andaluz, colibris de amor entre los dientes.

Não foram poucos os embarcados que se atiraram ao mar revolto em busca de Néctar e seus entrecéus de estrelas, morrendo alguns, salvando-se outros, em meio ao mar tempestuoso. Chegar à Néctar era mais que uma imposição do espírito, mais que as aventuras desatinadas, mais que morrer de amor entre escombros; chegar à Néctar era a honra da conquista e o amor mais claro à poesia que na ilha andava como andam os ventos, ainda hoje, rente às águas da baía de Santa Assunción.


Do livro inédito “Ilhas”

Edward Curtis


A sede

Correu por todo o Kinpur a notícia de que um iluminado hindu se encontrava em “estado de orgasmo” ininterruptamente há mais de duas semanas, num mosteiro zen próximo a Ayantavar, no sul da Índia.

Benien, jovem monge recém-admitido entre os andarilhos-pedintes -uma espécie de “ordem” tão rigorosa que era incapaz de aceitar até mesmo os mais famosos Mestres, justamente porque eram famosos e isto, segundo eles, constítua sério empecilho-, pois o jovem pediu permissão para uma viagem a Ayantavar, com o exclusivo propósito de conhecer o monge em gozo orgásmico há duas semanas seguidas.

– Seguirei anônimo e voltarei ainda mais anônimo – comunicou ao Mestre, acrescentando que, desse modo, provavelmente arrrancaria do iluminado monge o segredo de seu espantoso orgasmo.
– E para que aspiras a tamanho orgasmo, Benien? – perguntou-lhe o superior, com um rir de olhos que era pura malícia e ainda mais pura sabedoria.
– Ora, Mestre, e alguém por acaso não o desejaria?
– Benien, o sábio de Ayantavar, precisamente ele já não o deseja mais...

– Como assim? – perguntou o jovem.
– Há mais de três dias que o iluminado hindu faleceu para esta encarnação, Benien.
– Morreu? De quê?
– De sede, Benien. Ninguém fica duas semanas sem beber água...

Man Ray


A lágrima

O discípulo, flagrado em grave crise espiritual, tenta, do Mestre, esconder as lágrimas.
– Há coisas, Mestre, que nos fazem chorar de rir...

E todo se sacudia num pranto convulsivo, incontrolável, num inconvincente esgar de riso, tentando administrar, ao menos frente ao Mestre, o férreo orgulho.

Olhando-o firme, dentro dos olhos, o Mestre, sem esforço verte abundante lágrima, ausente dele, como é comum no Tibet, o mínimo crispar de um só músculo do rosto.
– Mestre, estás chorando?
– Estou, estou sim.
– Mas de quê, Mestre?
– De vosso riso tão extraordinariamente copioso...

Georgia O'Keeffe


Sidus


Consta que os marinheiros de Hérida procuraram, por longo tempo, a ilha de Sidus onde - comentava-se por todos os portos e mares -, deambulavam os mortos mais ou menos recentes. Nunca além de há sete anos.

Sobretudo os mortos que, por merecimento, haviam trilhado os caminhos da Terra, os pés descalços, dias e noites, pela exaustão dos meses e dos anos a vagar o mundo que lhes foi dado uma única vez. A levar, com eles, a nua oferenda das mãos e o sincero gosto pela luz de Antares que, já sabiam os antigos, era a maior estrela de todo o incalculável universo.

Ilha misteriosa e percuciente, a ilha de Sidus, segredavam, provia os mortos não das coisas do espírito, como seria o esperado, em se tratando dos mortos, mas de pão e vinho, porque, em Sidus, frisava a lenda, os mortos não morriam mais. Dançavam ao sol de Antares, livres e mortos numa serenidade fluida, amorosa. Nada a ver, claro, com a nervosa azáfama dos vivos.

Pássaros e gnomos, leões e centauros, sereias e lêmures - tudo em Sidus era a severa conspiração contra o canhestro modo como os vivos insistem em chamar de vida a um viver sem conta nem remédio, sem solução nem segredo.

Por isso mesmo, de todas as ilhas sonhadas pelos argonautas do arquipélago de Hérida, ou de fora dele, Sidus foi, sem dúvida, a mais insistentemente perseguida, a mais intensamente desejada de todas quantas ilhas existissem ou viessem a existir, aquele tempo, perdidas Oceano afora.

Mas como não permitir que os mortos morressem se, a cada dia, seguiam morrendo mais e mais - sobretudo pelo esquecimento dos vivos, habituais em levar suas existências ao sabor do vento? Alheios, como sempre, de que pudessem morrer um dia. Ainda que soubessem, os vivos, da certeza quase prosaica, de tão absoluta, pela qual, mais cedo ou mais tarde, os vivos morremos irremediavelmente. E nem há como se curar da morte.

Era aí, entanto, que todos se enganavam - em Sidus, geralmente depois de sete anos, os mortos bebiam das águas do enigmático lago Abrantes e, de modo lento, começavam a deixar de morrer. De profundos passavam a inquietos, e os olhos cerrados deles, dos mortos, abriam-se feito a desassossegada flor do acordar mais imenso.

Ato contínuo, sobre o dois pés a palmilhar as longas praias, agitavam-se excitados e vivos, já bem molestados pelo jugo de existir – o inferno e a agrura, o calor que lhes tomava os corpos feito fossem eles, os recém-vivos, altas labaredas; e o júbilo que lhes tangia os ossos e igualmente os angustiava como se não o merecessem, como se nunca o tivessem merecido.

Velhos nautas, quase aedos, de Sidus diziam que o maior pecado não era o de procurar a ilha, sob esforçado empenho, mas o duro ofício de esquecê-la, de a terem de esquecer um dia - justo quando passassem da vida à morte sem volta nem esperança.



Do livro inédito “Ilhas”

Magritte


Ládiva


“Feliz daquele/ que ao ver o relâmpago/ não diz – a vida é breve”.

No micro-poema do nipônico Matsuo Bashô foi onde encontramos, tarde dessas noites frias, nós, os navegantes de Hérida, a mais perfeita metáfora em favor da vida eterna – senha e sumo de quem se habilita à inenarrável ilha de Ládiva, ao norte do País Eslavo.

De gelo e praias cinzas, Ládiva nunca amanhece. É sempre bruma, e a imaginação da noite, em Ládiva. A noite imaginada nessa permanência com que a névoa insiste, mesmo quando, ao fim da manhã, você supõe, no céu da ilha um sol de meio-dia.

Contam que, muito antes de nós e de nossos bisavós, ou ainda bem antes destes, os moradores de Ládiva, cuja maior característica, registram, era o engenho para escavar terras e construir túneis, chegaram a abrir, a marretas e pontapés, no céu cinzento, um grande buraco. Por alguns dias, o sol brilhou profuso e obstinado, sem intervalos, sobre Ládiva. E iluminou as praias lavadas pelo azul do mar e pela franja das ondas que sobre a areia se atiram ainda hoje, insistentes, suicidas.

Assim que o buraco aberto por nossos esforçados ancestrais tornou a fechar, voltou a névoa contínua e tudo misturou-se, em Ládiva, ao cinza-escuro quando é a noite imaginada, ou ao cinza-claro, forte indício de que é manhã ou tarde na ilha onde cultuamos os mortos com altas velas e mantras que são quase uma secreta carícia. Isto se não fincamos, ao telhado da casa, os crânios lavados a sal dos mortos antigos. Em Ládiva tudo é assim, surpreendente e novo, como se a morte não existisse, como se a morte não existisse mais.

Contudo o que nos incomoda é a imaginação da noite em nossa ilha onde sequer a noite existe, o céu fechado de modo nunca interrompido, sem estrelas, nem mesmo o vazio da ausência delas, ali onde nos postamos, quando é madrugada, e nada descortinamos além do permanente breu e a fuligem eterna das esgarças fumaças. Deambula sobre nossas cabeças um céu sempre móvel, e carregado, que foge, incessante foge para o largo Oceano – como se açulado por forças incoercíveis.

Não por obra do vento, diga-se, posto que em Ládiva o vento gane apenas nas frestas das casas e nunca ascende além que a altura da mais alta edificação da ilha – o templo devotado a um deus que ninguém até hoje soube o nome ou, o que é pior, adivinhou-lhe os preceitos e nem sequer a espécie de oferenda que exige lhe seja colocada aos pés. E sem saber o que um deus quer, nós, os nascidos em Ládiva, vivemos sempre temerosos ante a crua iminência de ser duramente castigados.

Por isso amanhã partiremos outra vez ao continente, em meio à névoa e à neblina. Deixaremos o cais de Ládiva, até que ela seja apenas um ponto perdido, fraco a luzir no horizonte, mas que nossos olhos súplices ainda hão de buscar, com saudade, com muita saudade, feito ela tivesse existido um dia.


Do livro inédito “Ilhas”
Anônimo
O vaso e a utopia


O jovem monge anda 70 quilômetros para ter com um mestre cuja fama já ultrapassou há muito as muralhas da cidade.

Exausto e os pés feridos pelo íngreme caminho que leva à árvore sob a qual o monge vive e medita no alto de uma montanha, o noviço, ao deparar com a magérrima figura, não perde tempo. Vai logo perguntando:
– Mestre, andei 70 quilômetros até aqui, pois fui informado de que és o único monge, em todo o Tibet, que sabe o que é o Zen.

Levantando-se com dificuldade, o velho monge apanha ao seu lado um vaso onde guarda a água da chuva. Ergue-o o mais alto que pode e deixa que caia ao chão. Estrépito, a argila a estilhaçar-se, a água entornada à terra.
– Então isto é o Zen, mestre?

E o mestre que até então não dissera uma só palavra, responde, quase solene:
– Não, meu filho. Isto não é o Zen.
Anônimo
Chuva e pó

– Mestre, para que servem as chuvas que alagam e arruínam os arrozais?
– Para que se mostrem chuvas em sua inteireza, meu jovem.
– Mas que inteireza, mestre, se elas acabam com o que temos de mais precioso – o nosso principal alimento...
– Justamente por isso, por serem o nosso principal alimento.
– Não entendo, Mestre.
– Só entenderá quando você mesmo chover sobre os arrozais.

Lídia


Minúscula ilha do mar Egeu, redonda como o Coliseu romano e mais ou menos de mesma extensão e circunferência, Lídia poderia ser a mais despercebida ilha de toda história, não procriassem nela os pégasos, estes cavalos de inenarráveis asas.

Vindos de todo arquipélago, Lídia é o cenário de amor onde se acasalam, nos fulgurantes maios gregos, pégasos com pelagem das mais diversas cores, e asas da mais diversa envergadura.

Mal raie o sol a indicar que é maio no azul do tempestuoso Oceano, os primeiros pégasos pousam nas estreitas praias. Afundam então na areia os cascos, manchados à luz do amanhecer pelas tintas de um ouro-velho de ferruginosa beleza. As asas, essas nem falem, agitam-se alvas mas tão alvas que chegam a refletir como num espelho o azul do Egeu profundo.

Bardos e nautas, górgonas e sereias em vão tentaram chegar a Lídia e foram invariavelmente afugentados, seja pelo violento mar que ali se escrespa e naufraga mesmo as galés mais portentosas, seja pelo pronto vôo com que os pégasos se arremessam, cascos e dentes, asas e crinas tensas, a escorraçar, à proximidade das praias, os eventuais invasores.

Nenhum estranho, nem mesmo os pássaros do velho arquipélago ousaram se aproximar de Lídia. Ou ali deitar seus ovos. Permanentemente vigiada, desde o princípio do mundo, por gerações e gerações de pégasos, Lídia é e sempre foi a ilha dos cavalos alados. De mais ninguém.

E é nela, pois, que crescem, amamentados por soberbas éguas-de-asas, nela, em Lídia, os potros selvagens que trotam, e nela ensaiam, empurrados com o focinho pelos pégasos mais velhos, os primeiros e oscilantes vôos. Obsedante exercício de quedas e imprevistas ascenções.

Então é que acontece: às centenas os pégasos novos descrevem um círculo sobre Lídia, branca e verde em meio ao incalculável azul, e relincham, e voam, enfim voam!, a variegada pelagem, num estrepitar de asas que chega a silenciar o rumor do mar furioso.

Mas são tantos, por vezes, os pégasos no céu de Lídia, os que chegam e os que vão, os que amam e os que se assustam em escuro assombro, que o sol chega a faltar quando demora a tarde extravagante de Lídia e de suas praias brancas.



Do livro inédito “Ilhas”

Carleton Watkins


Florívia


Quando você pensar em conhecer Florívia, ilha de paz e remansos em meio ao turbulento Oceano, pense, antes de partir e examinar, ainda outra vez, velames e cordas, âncoras, víveres e instrumentos de bordo, pense em tudo o que sua generosidade ofereceu ao mundo. Não se decepcione nunca contigo mesmo antes de embarcar a Florívia.

Rememore, minucioso, antes de partir, o que houve de coragem ou desassombro a cada vez que a vida lhe exigiu , não o silêncio dos carneiros a pastar as pradarias ou a sombra quieta das árvores aonde você deitou o seu sono paciente.

Pense, antes de partir, se você já não fracassou, de modo humilhante como podem ser algumas espécies de fracasso. Sobretudo ali, pense, onde seu braço foi curto, e desprezível a mão que se encolheu ao bolso a negar o que o vigor do corpo poderia oferecer de auxílio ou socorro. Pense, antes de partir, na covardia envergonhada que o impediu de salvar alguém ao lado prestes a ser engolido pela garganta do abismo.

Em Florívia não crescem cactos e as praias douram-se ao sol de maio feito um poema todo construído de cochicho, quando, vizinho da noite, o entardecer é só uma extravagância das tintas do céu. Em Florívia dorme-se muito cedo, ainda antes dos passarinhos.

Conversar com as ondas ou com a mudez das conchas e dos caramujos é prática comum em Florívia. Ainda mais comuns do que os longos interrogatórios com que os peixes saciam a curiosidade não-pequena, a medir o tamanho da fé dos recém-chegados.

São bem suaves as noites de Florívia. Ausente de nuvens, o céu é só um drapeado de estrelas que cintilam e reperguntam às ondas, à faixa de areia das longas praias brancas, de onde vem o forasteiro. E principalmente isso, não se assuste: se indagarem o que você traz no coração.

Se você uivou na noite porque era tarde e a solidão o pôs assim num vácuo sem remédio, não, não pense, não vá pensar, a sua arrogância triste, de que, só por isso, você é merecedor de Florívia e de suas escarpas por onde sobem, imensas, monstruosas rosas vermelhas. Se foi, por sua vez, um ser dedicado a si mesmo, a iludir-se de que esse era o melhor modo de doar uma singularidade ao mundo, também não parta já a Florívia.

Embora a vilania e a derrota, o suor da noite grande e o medo andando as paredes da casa, aranha peluda; embora o suplício da espera, melhor não embarcar a Florívia. Lá, no ancoradouro da ilha, em seu porto onde rinocerantes dançam cantigas de boas-vindas e colibris voejam ao redor dos desembarcados feito um enxame fosforescente, só te pedirão uma senha.

Mas aí é que mora o maior mistério de Florívia: ninguém até hoje soube a senha, ao certo. Os que lograram acertar, por pura sorte acertaram a senha a esmo. Mas tinham, dizem, nas mãos - na concha das mãos -, a luz em prata de uma única lágrima. Vertida, contam por aí, face o espanto de sentir a coragem, gume afiado, atravessar de repente toda uma floresta de medos.

Florívia é longe, muito longe, e reverbera em meio ao grande Oceano, nas noites de lua cheia, a sua existência estrelada.



Do livro inédito “Ilhas”

Colombo Apothecaries


O mendigo e a voz

O monge chegou a tal estado de devota mendicância que não desejou mais ter voz. Quando necessitasse dela a mendigaria ao primeiro passante. E assim permaneceu quase duas semanas. Para tudo, usava as mãos e os gestos.

Houve, contudo, o dia em que o monge-mendigo precisou da fala para recitar um antigo mantra búdico, e que só podia ser rezado de viva voz. Não hesitou e acercando-se de um velhinho que passava pela rua, com a mão na garganta fez entender que precisava falar.

– Falar?... – titubeou o ancião, a voz fraquíssima.
– Sim, falar, meu mestre ... – pediu o destituído monge-mendigo – a voz própria, forte e tonitruante.

Sem nada entender, o ancião encerrou a conversa:
– Mas pra quê, meu filho, se tens voz de sobra?
– Eu não tenho voz, mestre. Eu só tenho é um som forte e arrogante que me sai do fundo da garganta.
– Acredito... – assentiu, confuso, o velhinho, desguiando, claudicante, para o outro lado da calçada.

Miran


Billa Jay


Quase três horas da madrugada quando apeou aos portões do Flamengo, o Dr. Ariosto. Grosso, grisalhado e peludo, Ariosto era a fina flor da medicina de Areias, no interior fluminense. Mandei-o chamar por sua reconhecida nomeada na qualidade de clínico de mulheres. Lavínia queixava-se de tontura e tremores, branca e de grandes olheiras, recusando-se a deixar a cama, o quarto. Chegamos a pensar uma inesperada gravidez, vinda assim ao gosto de casamento antigo e que sistematicamente recusara filhos, até esquecê-los que ainda fossem possíveis. Contudo fechei-me em copas – vá lá isto não se confirmasse e teríamos levantado à toa uma expectativa nervosa. Não queria somar ao já nenhum conforto, mais uma angústia.

Conduzi Ariosto ao quarto. Sentada na cama, enleada ao roupão escarlate, lá estava a minha Lavínia sendo cuidada pela creadagem. Confesso que segurei dentro uma ira súbita e bem fula – junto às gigantescas sombras que, fantasmais, cambiavam pelas paredes, os negros sugeriam-me urubus de agouro. Esfriou-me a boca do estômago repentino torpor e um pânico gasoso como que ameaçou desenrolar-se dentre as dobras do meu ser... – vá lá, caderno, – do meu ser assustado.

Não sei se pelo adiantado da hora, ou os aborrecimentos associados ao estado de saúde de Lavínia, senti como se a noite desabasse ao jardim a madrugada espessa, feito um bicho, uma lagarta cujos pêlos pudessem queimar a fina pele de vosso braço. Piara a coruja na espera agoniada de Ariosto noite adentro, o que não constituía sinal consolador. Agora silvavam morcegos enquanto Ariosto auscultava, de minha Lavínia, o coração temeroso. E punha tamanha intensidade ao sobrecenho, o velho clínico, enquanto apalpava e examinava, que mais um pouco supomos vê-lo que grave se nos dirigisse um diagnóstico fatal. Cousas da alma enferma, ali onde mora a culpa feito um bicho, outro bicho, ainda pior que a ácida lagarta, um bicho assim à maneira das lacraias e dos escorpiões, creame de vermes, ardendo de febre e de amoroso amor ardendo.

De que somos urdidos? Em que caviloso reparte de nosso cérebro, o ciúme feito uma ampola de veneno a quem o braço oferecemos? Pois ali, temeroso de todas as fragilidades de Lavínia, desejei que Ariosto indicasse alguma moléstia difícil, ainda que curável, mas que não, não me viesse com a conclusão simples de que aquelas eram cousas de mulher triste. –

– Dr. Leocádio José Prata, necessitamos exames complementares, aos quais, evidentemente, o senhor não poderá assistir, mas sua esposa, Dona Lavínia, encontra-se perfeitamente bem – disse Ariosto detrás dos pêlos, os olhinhos rútilos meio ocultos por espessas sobrancelhas, dessas que, desabadas, ainda retorcem e quase emplumam.

Passou-me ao omniographo da memória, umas que sombras – Lavínia abanando-se detrás do leque cor-de-rosa, milagre da tarde ou do céu, a minha Lavínia, animada pela prosa com que Licurgo deitava lábia e charme, a última domingueira que nos reuniu cá no Flamengo, em torno do gamão e dos quindins da negra Afonsa. Indispensável acrescentar nestas páginas, ainda que só pela pura sensação do instante, já que estas folhas ganharão o bom silêncio das cinzas e do Nada mais ardiloso, o suco de amoras, um requinte que nem parecia brotar das mãos de unhas retortas daquela escrava velha e feia como o perigo. O suco de amoras, senhores – impossível esquecer.

A tristeza de Lavínia, pus isto comigo, insistente, era de outra origem – sabíamos, cada vez com maior freqüência, dos sintomas neurastênicos que acometiam as mulheres, sobretudo quando entravam em cena secretos desejos. Eu também devia levar a alma doente – roía-me dentro a aspiração que não se deve revelar nunca a um homem, a aspiração simples de cessar – de todo e de vez.

Enquanto aguardava que o Dr. Ariosto realizasse o que chamara de exames complementares, com o luxo profissional de quem desejava aproveitar a viagem e dar por concluídas igualmente as apalpações de rotina, o meu pensamento andou-me, atroz, e galopante, frio e vênus, lápide e aurora, um soneto de Bilac recitado à hora ebúrnea dos setembros de então, o meu pensamento – se tudo ia-lhe bem ao corpo, seguramente alguma cousa desequilibrava-lhe o coração...

Uma das creadas abriu a porta do quarto, as duas folhas, de uma só vez, como para facilitar a passagem de Ariosto, peludo e ogro, os olhinhos faiscantes semi-ocultos pelo grosso sobrecenho, toalha numa das mãos, a maleta preta na outra. Com um frio e automático meneio, num limite que não sabemos se de gratidão ou nojo pela negra, nem esperou que o conduzíssemos à porta, consultando o relógio de bolso e marchando incontinênti em direção à saída. De assim, quem seguiu atrás dele fui eu.

– Dr. Ariosto, tudo bem? Tudo mesmo na normalidade?
– Tudo, tudo, Dr. Leocádio José. Volto pelo sábado com alguns resultados clínicos. Pode ir dormir, amigo; e se achar necessário, ao lado dela... – ensaiou jocoso e um pouco biltre, o peludo Ariosto. Eu, de meu lado, não lhe achei graça.

Subindo de volta à caleça que o esperava ao portão, só vi, pela fraca lua a lhe iluminar a abundante cabeleira, – o que, ajunte-se, era um milagre para homem de sua idade –, que enfiando os dedos, de ambas as mãos, grenha adentro, Ariosto de Costa e Lima, como que penteou a juba de ordinário revolta.

Deixei-me ficar ainda ao portão vendo-o que desaparecia na noite pálida, ao tropel das bestas. O mar lá, sempre e sempre o mesmo mar, o mar do Flamengo contando-me então negros contos de horror e crime, fealdades medonhas.


Fragmento do romance “Amar-te a ti nem sei se com carícias”

Brett Weston


Brinks: solo por ti mi pecho arfante se pone estremecido, só por ti y su cola móbile y tiquitita, cauda argolada y casi sempre feliz. Brinks’i. En nesto momento que las copas urden el invierno del balneário de Guaratuba, e todo se pone de frio detrás de las cubiertas, sobretodo el Viejo que en júnio se va a morir e por esto se pone a entornar a lo vino e a temblar, a temblar, como se entornara la muerto de uno solo golpe y gole – mortal. En estos momentos es que me aperta acá en el lado esquerdo una lúgubre canción hecha de remorso, lo podrido veneno de la saudade y me pega, por todo el cuerpo, unas ganas de matar ô de morir. Quiçás, quiçás, quiçás. Chororó, guarará, chororó.

Brinks’imi: si, si, es contigo que hablo, juguete-de-pelos y atado a mi colo, de tal forma acojido, como se hubiera nascido exclusivamente para esso, su linguita destra, que tan marafas a veces, hein, Brinks, que dices, que dices tu?, paraguayta cumple, como en las correspondências que, ahora, há mucho tiempo, no lo sê que es recibir. La marafona no tiene quien la escriba. Brinks’i. Brinks’imi.

Oh, Brinks’michî, Brinks’michî, es tan frio en nesta playa en la que caminas comigo, amiguito simples, testigo de tantos años já, vos que se vá entrado em edad, porque viejo es solo uno, aquel, no, no, Brinks?, no, Brinks’i? No, Brinks’michî?, cosita titiquinita y fofa, focinhito de aguja, ollitos de botón y vidro, mi más pequeno serzito que se mueve, ah, como se mueve, en la arena de esta calle úmeda. Carajo. Brinks!, de esto modo, de aqui para lá, por debajo de mis piernas, ah, Brinks’i. me enovelas com sus corrientes e más um poco estarê en el solo. Y se me quiebra un huesso? Y se san ossossosporossos? Pero tu inquietud, para un perro de casi diecisiete años ( haverá mais longevos asi que las tortugas ô los dinossauros?), ah, Brinks’i, es assombrosa, e solo esto me pone de nuevo de risas contra la vida.

No: tengo Brinks, Brink’si, Brinks’imi, Brinks’michî. Oh, nada te hablo, juguete amoroso y maternal de mi vida marafa, nada te hablo, querido, de como es frio en el balneário de Guaratuba sob el fog de júnio y el mar se pone como de vidro toldado por las lluvias. Brinks’i. Brinks’michî.

El muchacho no há más, solo el viejo persiste con su caceta amputada por el tiempo y que todavia prossigue coçando, solo esto maldito viejo que carrego en las costas hecho una prisionera en el campo de concentración. Brinks! Y já me olvido de que vivas asi dicisietes tan persistentes, já me olvida todo y empezo a llorar.

La misma venda de la equina em frente, Brinks, su fachada y la señora pálida que me vende una copa de conhaque, en los duros ojos de víbero el asco – el temor ô mismo la admiración que provoco en los nativos desde degredado pedaço de mar em Guaratuba del Paraná,l a cada que saigo – bruja ô guru. (...)

Perdoname, Brinks, estos exclamados sonambulismos del corazón. Si, Brinks’i, Brinks’michî, nadie puede hacer algo de bueno ô de sueño por quien, igual que yo, que en neste instante, tengo comigo que todas las salidas estan cerradas. Brinks’michî. Brinks’michîmi. Yo e tu caminando que vamos , los dos, lado a lado, quién lo más preso en las corrientes del bajo-vientre? Quién más viejo que la tortuga?

Oh, Brinks’i, yo e tu caminando que vamos por la estradita que va a dar en la playa del Prosdocimo. No, no adianta que yo cuspa en la pobre señora del bar, noi adianta eganá-la ni rasgar-lhe la piel de su cara com is uñas marafas tan de pantera, una cosa es la solución: marchar y marchar para adonde nos lleve el viento.

Que súcia arena donde jugas y sonoro mijas com una felicidad infantil e llena de risa! Brinks’michî. Brinks’michîmi.

Pero yo, quien soy yo?, sigo confusa, por el conhaque y la vida, la saudade del niño del verano en deciembre entranhada a mi assim igual que uno feto arrancado vivo a la profissión humana, solo tu me entendes, solo tu, mi tiquitito Brinks, ojitos enternecidos de jabuticaba, orejitas vigilantes del silêncio, colita móbile. Brinks’michîmira’ymi.

Brinks’michîmira’ymi, alegrando de yo, oh inocência flagíl, emitindo en lo mercado de peces unos ladridos tan flacos, Brinks, tan flaquitos y tiquititos como tu, Brinks’michimira’ymi, talquito Buldog, pirezito de leche donde afundam biscoitos umedecidos, constantes, tu sabes, y las raciones especiales, Brinks, companhia, ruídos y mañanas.
Brinks’michîmíra’ymi. (...)

Donde estás? Donde estuvo se tu no es más que la sombra en dibujo de la noche que va me pegando sola, assolutamente sola, Brinks’michîmira’ymi, sin nunca haver tenido a vos, tiquititíssimo, nadie non es, ni vos, ni la tarde, ni en el niño e yo, yo estou assim tan sola:
Brinksmichimira’ytotekemi.

Do livro “Mar Paraguayo”