quarta-feira, 5 de março de 2008

As Mil e Uma Mortes de Nelson Cavaquinho

Ele tinha sobretudo majestade. Não importava se num boteco xexelento do velho centro do Rio ou entre a vip-intelligentsia dos bares de Ipanema. Segurava um violão de forma desconcertante – atravessado ao peito, quase na vertical, feito um martírio ou um drama. E cantava a morte com a imponência solene de quem profundamente se sabe mortal.

Nossas vidas esbarraram-se com freqüência nas madrugadas aturdidas, entre hippies, travestis, proxenetas, gigolôs, michês, prostitutas, a ratatuia que povoa os botequins humilhados, bebe o que não tem, e grita, e briga, e surrupia tudo o que tem direito. Mesmo ali, altar da transgressão, era como se estivesse em palácio a sua cena, feita de cerveja, violão e o anúncio – claro – de que o tempo é um animal odioso.

Assim, tocou a transcendência como nenhum outro poeta popular do meu país – as mãos curiosas de sua verdade terminal; e ousou perseguir, até o fim, as noites caducas, as noites mixas, a solidão do vasto geral reino da gonorréia, da sífilis e do cancro-mole – maltratado continente de bêbados, malucos e doidos-varridos.

Não há o que chorar. A sua existência se cumpriu (ou foi consumida?) no azarado destino que o pôs num país que decreta aos gênios populares apenas o direito ao “folclore” – como se este fosse a glória máxima de uma biografia toda ela devotada à poesia. Não há o que chorar, se nascer aqui sempre foi triste, desolador e arbitrário.

Olho lá: numa sacola das Casas Sendas, Madame Satã vendia o seu livro de memórias, e acabava liquidando sumariamente a esmola amealhada, num porre que o colocava literalmente a nocaute sobre a mesa e o chope; Ismael Silva, o compositor incomparável, se escondia num apartamento decadente da Gomes Freire, e Nelson Cavaquinho, na via-crucis dos bares, sempre teve a birita financiada por otários, tietes e admiradores. Olhar lá é pior.

O fato é que nesta noite e neste subúrbio, a voz rouca, devastada pelo álcool, pelos anos e pelo cigarro, vem desde o fundo do fundo do poço, como um presságio, como uma nota dissonante, e canta em verso sublime a nossa existência provisória, esse delicado horror que preferimos esquecer – como uma verdade incômoda trancada dentro de uma gaveta. E vem com ela uma outra espécie de morte – esta que os vivos provam a cada morte que entre a gente acontece.


Texto publicado originalmente em Bolero's Bar (Travessa dos Editores, 2007).

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