quarta-feira, 5 de março de 2008

Silas

Quando desembarcamos em Silas, no gelado Atlântico Sul, sabemos agora pelos registros de bordo, corria o ano da graça de 1546. E foi um raro acontecimento descobrir esta ilha de rocha basáltica e gelo e neve, povoada, às dezenas de milhares, por inenarráveis pingüins albinos.

Tão alvos, confundiam-se, os pingüins, ruidosos, à paisagem desesperadamente branca, que, ao sabor das ventanias, indicava ainda uma paisagem em contínuo movimento. Como se toda Silas andasse feito andam as areias do deserto nem que uma superfície móvel e delicada.

Muito poucos fomos os navegadores de Hérida que, vencido o ímpeto de desafiar Silas, e possivelmente o de sobrevivê-la, retornamos às embarcações fundeadas ao largo da ilha, remando, extenuados, frágeis batéis. E a vencer, com eles, as altas ondas e o grosso mar que se lança contra rochas de açúcar e gelo, a alvoroçar os pingüins sob a ofuscante claridade que fazia, às vezes, de Silas, uma espécie assim de massa luminosa – mais fria que o vento a eriçar a neve eterna que, asseguravam os marinheiros, nascera com ela, com Silas, desde o começo, desde a primeira vez.

Muito antes de nós, não foram poucos os navegantes que pereceram à neblina de sua alvura, enredados pelo frio e pelas pesadas nevascas que a tudo sepultavam, em Silas, tornando-a alguma vez a miragem de perigoso iceberg a derivar no atlântico azul. Silas, entanto, prosseguia fixa, como fixas são todas as ilhas e não sabemos até hoje de nenhuma que pelo mar deslize como deslizam nele as caravelas, os afogados ou as montanhas de gelo. Embora existam cartas marinhas dando como certas as ilhas nômades do Cáspio e do Báltico. O que, claro, soa um grosseiro disparate.

O fantástico em Silas existe, sim, e é toda a razão desta crônica ilhéu, trêmula de frio: Silas conserva em seu solo, feito de incontáveis camadas de neve e gelo – as que existem agora e também as que existiram um dia e que ao calor dos séculos foram se dissolvendo – conserva os seus mortos, todos os seus mortos, assustadoramente não corrompidos face às baixíssimas temperaturas, numa vertiginosa integridade de vivos.

Em nossas explorações descobrimos, surpresos, entre outros assombros, espalhados pela ilha, aqui um mercador egípcio, impossível de datar senão pelo barrete e os finíssimos bigodes; ali, o que nos pareceu o curioso e preciso cadáver de um rei aventureiro; mais adiante, as curvas imutáveis do corpo de uma mulher; ou, completa, uma cena, cuja beleza de gelo a expedição inteira celebrou com imprevisto fervor: a glabra nudez de um efebo negro, de encaracolados cabelos, intimamente acolhido ao rijo tórax de um veterano soldado de Tebas, os olhos de ácido azul.

Para além do Tempo, o íntegro gesto de amor – inteiros como estátuas de pedra, os olhos deles, abertos, se entreolham, bem próximos, sem piscar nunca, ungidos por obsessivo enlevo, como se nada houvesse acontecido, desde então, sobre a Terra.
Distante dali, em outro tempo e lugar, para além dos pingüins albinos, só a música longínqua, de um baile talvez, pelo que soa e torna a silenciar, na branca amplidão, uma orquestra de violinos.

Quem viu Silas assim, renascida da neve, garante que nunca mais foi o mesmo.


Texto inédito do livro "Ilhas".

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