quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Py

Na ilhota de Py um pirata permanece desde a criação das ilhas, dos oceanos e dos piratas, perfeitamente em pé, perfeitamente perneta e perfeitamente grato ao rochoso vértice que brota do mar, o qual além de lhe prestar socorro em noite tormentosa, serve de modo justo e sem erro, nem mais para a esquerda nem mais para a direita, ao seu único pé, cujos dedos abrem-se numa ferida de sal.


Saudades da muleta, dizem que sente, embora tivesse o hábito de, sem ela, permanecer em pé, sendo, muitas vezes, em razão desta pantomima, incensado pelos salões. Abandonava as muletas e equilibrava-se num desconcerto que causava mais o riso do que a lágrima, num só pé e numa só perna, o perneta triunfal.

Na ilha de Py nosso pirata chegava a ficar três dias e três noites, apoiado apenas no pé que dispensava a muleta, até ser resgatado por errantes marinheiros.

Senhor de estoicismo proverbial, não abandonava nunca o posto. Primeiro, por temer que o lugar lhe fosse roubado; e, segundo, porque dali, munido da mais potente luneta, vigiava o mar tormentoso à espera de quem o resgatasse um dia.

E lá, segredam, continua até hoje, ilhéu de seu próprio corpo, certo de que, mais cedo ou mais tarde, algo ou alguém o salve de si mesmo.

Do livro inédito "Ilhas"

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