Assistir a morrer um homem
Ontem, ao final da manhã, assisti morrer a um homem.
Vinha a braços com o Goes numa conversação animada que se demorou na esquina de Imperatriz com a rua Direita, excitados ambos com a história dos Césares e a da Roma antiga, duas das manias que em comum cultivamos, quando nos despedimos. Ao Goes não lhe apetece deixar assunto inconcluso e, lembra-me bem, ainda voltou-se, mais de uma vez, para acrescentar um detalhe quase desprezível à vida de Caius Julius e outra creio para reformar uma minha afirmação sobre o Imperador Constantino.
Já o disse aqui, muita vez, e digo-o de novo – o Goes é tido por muitos como lunático. Falou-se sempre em nevrose que, por insuspeitos caminhos, teria se aliado a profunda neurastenia, mas outros tergiversam e dizem que a neurastenia começou primeiro e que a nevrose veio depois. Eu que nada entendo de alienados, e muito menos da cerrada teoria dos alienistas de nosso tempo, profusos e debatedores, tenho para mim que o Goes é como todos – às vezes alegre, às vezes triste. O diabo é que quando ao Goes é dada uma alegria, por menor que seja, já entorna um tonel e cai em esbórnia inconfessável; e se triste, o Goes, entre matar-se ou não, feito os poetas românticos, ou tardo-românticos, some da vista e, comentam, afunda em nova carraspana, choroso e pedinte, longe dos amigos e da platônica amada, a Valquíria, pelos clandestinos da Gamboa. É o que dizem e espalham os invejosos do Goes.
Uma que outra vez, aceito, desanda os trilhos mas daí a impingir a ele uma demência que não tem, é excesso, e, repito, inveja, morba inveja. Isto mesmo – inveja de seu brilho e, alguma vez, censura, por suas posições veementes. O Goes, por exemplo, é monarquista, ainda que não revele isto abertamente, e nem precise – cochicham pelos cantos, abafam – “Monarquista; o Goes é monarquista; e alienado...”
Foi tudo muito repentino e de sopetão: a dous passos de mim, o homem desabou, no que, em princípio, pensei tratar-se de um ataque epiléptico – o homem, um vendedor de vassouras, estrebuchou-se ao passeio, convulso, trêmulo, de grandes olhos esbugalhados. Como crispasse as mãos e vertesse pelo canto da boca uma espécie de baba, eu e as demais pessoas que logo acudiram ao redor, não interferimos, como deve ser o procedimento normal, e bastante razoável, nessas ocorrências.
Lamentei não ter mais o Goes ao lado. Poria ao peito do homem a sua cabeça nervosa e o auscultaria de ouvido, os olhos fechados, os olhos profundamente fechados, sem esquecer do cavanhaque que lhe confere, nestes momentos solenes, um ar superior, quase mefistofélico. Melhor seria o diagnóstico: “Angina pectoris, meu caro Leocádio. Angina pectoris.” E, tenho certeza, poria tamanha reverência no latim escovado, que teria todo o rosto – e o pontudo cavanhaque – toldado por uma sombra assim meio definitiva, conclusa; e fatal. O pequeno ajuntamento, outra de minhas certezas, se desfaria, e alguém, do meio da malta, coração solidário, se prontificaria a chamar o padre, o morgue, a polícia montada.
Mas não foi assim como rabisco cá nestes papéis velhos: tudo, claro, passou-se em segundos e não com o tamanho que me ficou o parágrafo acima, e logo vimos que de trêmulo o homem foi tomando uma cor entre o roxo e o violáceo. Houve quem dissesse, abafado, não querendo crer na própria certeza, que era a febre tifóide. Assunto meio tabu, as autoridades sanitárias parece escondiam um surto, ainda que controlado, do mal – sobretudo nas cercanias de Parati e, me parece, também em Itaúna. O comentário foi como um rastilho de pólvora: o tifo havia chegado enfim ao Rio de Janeiro. Gelamos.
Observei bem justo – a roda em torno do vendedor de vassouras abriu-se ainda mais pois ninguém descuidava de que em se tratando “dela” , todo cuidado era nenhum, e pode que viajassem no vento os ovos sinistros da morte abjecta. Eu mesmo me surpreendi tornando dous passos atrás.
Ver morrer a um homem não é cousa fácil, e ver aquele ali, modesto vendedor de vassouras, a morrer de tifo, parecia ainda menos suportável: havia a agonia nos olhos dele – abertos e muito intensos – que insistiam olhar, num esforço inútil, para além do chão.
Nisto alguém bateu-me ao ombro: capa e cartola sugeria um dândi saído de algum conto francês, a figura que eu via, bem atrás de mim, buscando ultrapassar a roda em torno do morituro: o Lafaiete, meu Deus, o Lafaiete!
--- Não creio, é o Leocádio? É o Leocádio José, nosso causídico? – foi logo se expandindo, como era de seu feitio.
---Também não creio... – fiz mossa. – Também não creio, é o Lafaiete,
é ?...
Abraçamo-nos num afeto sem conta, e até, convenhamos, meio impróprio para as circustâncias. Ao lado de nossa saudação espalhafatosa, um homem, necessário não esquecer, morria, àquelas horas, a sua morte, transformada em cena pública, com direito a audiência e, mais um pouco, ao estrepitoso festim do aplauso, essa iguaria, que está em Plotino, e era o modo como os antigos invocavam os deuses.
Antes que o Lafaiete soltasse-me de seu abraço dele, ambos quedamo-nos mudos, os dous: o vendedor de vassouras mexia lento, mas mexia, uma das mãos, e a perna direita tentava dobrar o joelho, como se reunindo impulso para levantar-se da calçada.
Foi um oh uníssono e aterrado de todos à volta do homem que, sem delongas, ainda que zonzo e muito tonto, aprumou-se de inopino, olhando em torno com uma estranheza que jamais esquecerei agora nem nunca nesta minha vida que, devo dizer, já vai longe. A seguir, cambaleante, insistiu, com forte sotaque luso, onde andavam as vassoiras, as vassoiras. A malta, não é surpresa, enfureceu-se, quase a comunicar ao homem que morresse, que ao cuspido chão do centro da cidade do Rio de Janeiro, tornasse morrer a sua morte suja e pobre e gasta e carcomida. Rareavam já nas ruas os vassoureiros, como os chamávamos, a entoar bordões lusos, desde longe, o molhe de vassouras encarapitado ao ombro protegido por uma toalha dobrada, “olha as vassoirinhas”, “olha as vassoiras”, “venham a ver, vassoiras novas e firmes”, “olha as vassoiras”... O Lafaiete não se conteve, ríspido, gerente de casa financeira, autoritário:
--- Se vais ao gole, malandrim, ide acompanhado do diabo!
O homem apertou os olhos bêbedos – sabe-se lá de que venenos – a fronte esquerda roxa e meio inchada, e num esforço que a todos nos pareceu ir às últimas consequências, entreabriu o beiço esfolado e antes que inteiro completasse, de novo, a palavra “vassoira”, estatelou à calçada – um baque surdo, desconjuntado.
O Lafaiete foi às ganas com empáfia dona das gentes e da vida:
--- Tifo sãos os fernetes, a catuaba d’aguardente, os cognacs... O resto, Leocádio, é a sempre bebedeira do populacho que emporcalha a capital da República – disse, virando-se para mim, o ar superior e indiferente, como se a nova queda do homem fosse só uma encenação, uma fraqueza evitável, cousas dessa natureza e perfume, feito dizia nosso colega de fórum, o saudoso dr. Lucas Monteiro Ferraz, o advogado das causas perdidas...
Antes que eu concordasse com ele, porque com o Lafaiete ou se concorda inteiramente ou se fica inteiramente de mal, o vassoureiro gemeu um vagido tão das entranhas, mas tão fundo e tão abissal que, não exagero, leitor que me deslê as linhas tortas, era como se a vida sufocada não suportasse, ao vassoureiro, o corpo combalido.
Para o Lafaiete foi a gota, a palha que transtorna o celeiro – tomando o gemido como um insulto, e peor, dirigido diretamente a ele, um cidadão de bem com o fisco e com a finança, além de virtuoso e sem vício, estava a merecer, via-se, uma resposta. Roubando-me, ato contínuo, a bengala que, sabeis, não largo nunca, sobremodo nestas alturas (alturas?) declinantes e melancólicas, numa velocidade de esgrima avançou contra o homem estendido ao chão, procurando-lhe a cabeça. O Lafaiete parecia destinado, aquele dia, a matar. E só não alcançou o intento porque, pasmem!, parou a meio caminho com as bengaladas, o homem estava verazmente morto, mais que morto, mortíssimo, como comprovou um piedoso boticário estabelecido logo na esquina e que, apesar de atrasado, veio em socorro do vassoureiro e pôde lhe medir o pulso e lhe verificar o fôlego a um espelho.
--- Vá lá saber... Vá lá saber... – e era só o que rosnava o Lafaiete, fingindo uma desconfiança que evidentemente não tinha, batendo-me de leve nos ombros, despedindo-se com um gesto de que nos garantia novo encontro, e saindo à sorrelfa, a cabeça várias vezes a sacudia de um lado para outro, negando o boticário, o vassoureiro e, de certo, negando a morte.
Veio uma chuva e o pequeno ajuntamento em volta do vassoureiro desfez-se como num passe de mágica. Eu mesmo, logo me vi, sob a sacada de um prédio, o jornal protegendo-me da água, repentinamente torrencial, e do vento. Dali, a alguns metros do morto, espreitei, aterrado: grossa, tempestuosa, a chuva era tanta e tamanha que empapava o algodão barato de que lhe eram feitas a calça e a camisa e houve um momento que, de transparente, o morto parece ficou nu, nítido o contorno do sexo e quase toda a barriga abaixo do umbigo, onde um cordão, agora desatado, fizera as vezes de cinto. Mas nem isso, as suas vergonhas públicas, a chuva, o vento e mesmo a manhã finda levavam em conta, desatando a chover ainda mais o mesmo aguaceiro que punha o mundo abaixo num dilúvio medonho. Peor que isso, mais pornográfico, para usar uma palavra da moda, foi ver que o morto, só, sob a chuva torrencial, numa morte de meter medo, concluí morria profundamente – acho que de corpo e de alma.
Fragmento do romance "Amar-te a Ti Nem Sei se com Carícias" (Editora Planeta, 2004) lido na Tenda dos Autores durante a FLIP 2006 (Festa Literária Internacional de Paraty).
quarta-feira, 5 de março de 2008
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